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Notas sobre o alargamento da União Europeia

As motivações geopolíticas foram sempre o impulso do alargamento da União Europeia, tanto do ponto de vista dos Estados-membros como dos que a estes se quiseram juntar.

As motivações geopolíticas foram sempre o impulso do alargamento da União Europeia, tanto do ponto de vista dos Estados-membros como dos que a estes se quiseram juntar. Lembrando apenas dois ciclos marcantes dos últimos quarenta anos, a integração dos países da Europa Central e de Leste foi uma maneira de evitar um vácuo em relação a quaisquer intenções da Rússia, fortalecendo a independência e a inclusão no mercado comum; antes disso, a integração da Grécia, Espanha e Portugal protegeu os seus processos de democratização, impedindo o agravamento da instabilidade política e económica.

O contexto dessas adesões não é, no entanto, comparável ao que hoje discutimos, até porque a natureza da UE e a sua posição geopolítica mudaram. Nas últimas duas décadas, a UE procurou dotar-se de instrumentos de política externa e de segurança comuns, precavendo-se para um ambiente mais vulnerável, e tem também tentado preservar um quadro onde os direitos fundamentais, a democracia e o estado de direito continuem a ser atrativos. Aparentemente, são. Ou não haveria novo processo de alargamento. 

No entanto, a UE não deve abordar o alargamento geopolítico a partir de uma exclusiva perspetiva de vulnerabilidade. O ímpeto das adesões da Ucrânia ou da Moldova prova o apelo que a UE tem como provedora de segurança e guardiã de valores democráticos. Ambos são argumentos poderosos para encarar o futuro com confiança, pelo que manter a geopolítica conectada aos valores é uma das vantagens competitivas ao dispor da UE. Contudo, nestas mesmas duas últimas décadas, a política de alargamento não tem sido capaz de ancorar substancialmente a democracia e o estado de direito nos Balcãs Ocidentais. Em vez disso, o retrocesso democrático tornou-se mais competitivo. Uma das razões explicativas reside na prioridade atribuída pela UE à segurança em detrimento da democracia naquela região, temendo uma potencial erupção de violência étnica e um revisionismo histórico agressivo. Os factos não desmentem esta inquietação, mas também dizem que os avanços negociais da Ucrânia e da Moldova no último ano foram mais rápidos do que muitos dos parâmetros definidos para os Balcãs Ocidentais ao longo da última década.

Uma acomodação destes no mercado único, endossado pela Comissão Europeia, permitirá à UE reorientar alguma coesão económica e social internas e, por exemplo, mitigar a fuga de cérebros da região. A integração gradual nos programas comunitários existentes permitirá, ainda, que os candidatos participem na formação das regras que os irão orientar, enfatizando os benefícios que a cooperação traz aos cidadãos, pressionando os seus governos a defender as normas comunitárias, promovendo assim a integração.

O alargamento tem sido uma das estratégias de maior sucesso da União Europeia. É, a seguir à paz alcançada entre as principais potências, a principal conquista política da Europa ao longo da história. Integrar novos países que, por decisão soberana, decidem alinhar os seus quadros constitucionais, valores políticos, tecido económico, princípios democráticos, com um todo partilhado de regras subsidiárias, tem, grosso modo, funcionado em benefício de todos. Esta espécie de império benigno da lei tem também sido um dos mais interessantes contributos da UE para a história das relações internacionais, processo bem analisado por Jan Zielonka no seu Europe as Empire.

Hoje, à beira da aceleração de um novo alargamento a, talvez, mais nove Estados com alguns dilemas internos semelhantes, mas também contextos nacionais distintos (seis dos Balcãs ocidentais, a Ucrânia, a Moldova e a Geórgia), - deixo a Turquia propositadamente à parte, porque me parece ser um caso particular -,vale a pena levantar algumas questões que inevitavelmente teremos de discutir, naquilo que será uma das maiores transformações políticas na Europa do pós-Guerra, já em arranjo institucional evidente numa lógica de círculos dialogantes entre uma Comunidade Política Europeia (com convergência geopolítica e acordos bilaterais com a UE), acordos de associação (com respeito por regras comunitárias, centrados no mercado único mas sem necessidade de aprofundamento na relação), membros de pleno direito da UE fora da zona euro, mas cumprindo com rigor as regras dos Tratados, e membros de pleno direito da UE dentro da zona euro, cumprindo igualmente com rigor os Tratados. Portugal deve continuar a estar neste núcleo duro da integração.

Fonte: https://www.europarl.europa.eu

Em primeiro lugar, uma UE com trinta e seis Estados-membros (UE36) aumentaria o mercado interno de 447 milhões para 513 milhões de pessoas, abriria novas oportunidades de investimento e reduziria barreiras à mobilidade laboral, o que permitiria o recrutamento de trabalhadores indispensáveis à nossa demografia e a muitos setores da nossa economia.

Em segundo lugar, o novo alargamento acrescentaria valor agregado à UE na competição global por matérias-primas críticas à transição energética e tecnológica, no fecho de um arco geográfico de segurança comum, integrando novos mercados com infraestruturas estratégicas e acessos a importantes rotas comerciais.

Em terceiro lugar, a Ucrânia passaria a ser o maior destino da Política Agrícola Comum, ultrapassando a França, devido à dimensão do seu setor agrícola, com 25% das áreas produtivas da UE, dando outra escala conjunta no diálogo com Norte de África e o Médio Oriente. Sobre os fundos de Coesão, o alargamento a países com níveis ainda mais baixos de rendimento nacional bruto per capita, levará a que países como Portugal possam ter uma menor fatia orçamental, caso este não seja amplamente reforçado com o aumento das contribuições dos Estados-membros ou com novas receitas. Tudo isto remete para a urgência da boa utilização do PRR, do PT2020 e do PT2030 para diluirmos, a prazo, os impactos da diminuição dos fundos estruturais.

Em quarto lugar, ao contrário da regra na história dos alargamentos, os próximos seis poderão entrar na UE antes de aderirem à NATO, o que valorizará o artigo 42º.7 do Tratado de Lisboa - a cláusula de defesa mútua - sem terem o chapéu dos EUA dado pelo artigo 5º do Tratado de Washington. Ora, isto pode ser aproveitado pela Rússia para novas investidas, aproveitando divisões e fragilidades na segurança conjunta da UE, o que torna prioritária a nossa autonomia estratégica, os investimentos em defesa, a articulação entre doutrinas de segurança, por exemplo, entre as cada vez mais poderosas forças armadas polacas e, provavelmente, ucranianas, além de uma eficaz dissuasão pela via do chapéu nuclear do Reino Unido, o que implica uma reaproximação estratégica com Londres. Além disso, é prudente considerar que o regresso de Donald Trump à Casa Branca reativará com estrondo uma linha política crescente entre republicanos sobre a retirada dos EUA da NATO e de outras organizações, o que torna a autonomia europeia ainda mais prioritária, a vulnerabilidade da nossa segurança mais evidente e o mundo mais perigoso.

Estas e outras dinâmicas vão marcar os próximos tempos na política europeia e ter um impacto profundo nas nossas vidas. Empresas, políticos e sociedade em geral devem discutir e antecipar desafios desta envergadura, preparando o país para os riscos e as oportunidades do processo. Quem olhar para o próximo alargamento com as lentes do passado não está a ver a fotografia como todas as tonalidades que ela exige. Nem a proteger os seus interesses.

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é atualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.