Dossier Técnico

Publicado em Edição 16

Responsabilidade civil do produtor no mundo digital

Já notou que as fantasias futuristas mais coloridas se têm tornado realidade no mundo do desenvolvimento tecnológico?

Por vezes, a transformação digital é descrita como “quarta revolução industrial”. Tem havido inúmeros avanços na análise de dados, serviços de computação remota, conetividade de tudo, redes sem fios cada vez mais rápidas e inteligência artificial (IA). 

A digitalização de fábricas, procedimentos cirúrgicos e até torradeiras também levanta questões acerca da responsabilidade civil. Quem é responsável se uma torradeira ligada à Internet causar um incêndio que destrói uma casa? Que acontece se uma IA a operar um paciente tomar uma decisão errada?

Os produtos que usamos todos os dias já não são o que eram. Agora, tudo é rotulado de inteligente e tem capacidades de análise e de adaptar as suas funções face a essa análise. Os eletrodomésticos estão ligados à Internet‑das‑Coisas (IdC), o que em si é um sistema inteligente que permite o processamento de dados e causará... Bom, nem sempre conseguimos prever que tipo de mudanças surpreendentes a IdC ou a IA possam operar através dos nossos eletrodomésticos. A sua torradeira não se tornará muito inteligente do dia para a noite, mas o desenvolvimento não vai parar por aqui.

Os europeus estão habituados à proteção das leis nacionais de responsabilidade civil do produtor com base na Diretiva de Responsabilidade Civil do Produtor de 1985 (85/374/ EEC). Ao abrigo deste diploma, o produtor de um artigo é responsável por quaisquer danos corporais ou patrimoniais aos consumidores que resultem de um defeito – ou seja, falta de segurança no artigo em circulação. A diretiva resultou surpreendentemente bem, com uma única mudança ao longo dos anos, especialmente se considerarmos que os produtos utilizados hoje vêm com inúmeras e novas tecnologias digitais. O produtor de um artigo físico, como um berbequim elétrico, não é o único na cadeia de valor que acrescenta risco em potencial.
Mas, com as novas tecnologias, a culpa pode também ser atribuída aos fornecedores de software ou de sistemas de rede ou de ligações IdC, aos utilizadores das novas tecnologias ou mesmo aos criadores da tecnologia de IA utilizada nesses sistemas.

Há muitas definições de IA. Contudo, em essência todas refletem a capacidade de um programa, sistema, dispositivo ou robot de imitar o comportamento humano. A IA fá‑lo através da utilização de diversas tecnologias e é também capaz de aprender e desenvolver as suas aptidões de forma independente, enquanto desempenha tarefas tradicionalmente efetuadas por seres humanos.

A UE tem trabalhado numa revisão exaustiva da Diretiva há vários anos e foi apresentada, em Setembro de 2022, uma nova proposta de Diretiva e uma nova Diretiva de Responsabilidade Civil de Inteligência Artificial (AILD). Para além de reagir ao desenvolvimento de novas tecnologias e produtos capazes de ligação a redes informáticas as propostas também alterariam a presente exigência de que o consumidor tem de provar que um produto é defeituoso e que o defeito causou
o dano. Claro que a responsabilidade civil só implica uma indemnização após a verificação de uma ocorrência. Do ponto de vista da gestão de risco, a Comissão propõe‑se igualmente rever a legislação de segurança de produtos, como a Diretiva Máquinas e a Diretiva de Segurança Geral dos Produtos, para levar em conta novas tecnologias.

A proposta da Comissão introduz disposições que asseguram que haja sempre um representante comercial ou legal com sede na UE que possa ser responsabilizado por produtos defeituosos adquiridos diretamente a fabricantes fora da UE.

Algumas das principais novas características da Diretiva são:

  • Sistemas e software de IA, bem como artigos com acesso a funções de IA, são considerados “produtos”
  • Perda de dados, muitas vezes não considerada dano patrimonial, será indemnizável
  • Produtos melhorados ou modificados após venda original (numa economia circular) têm a mesma proteção que os produtos originais
  • Representante na UE necessário para reclamar indemnização relativa a produtos obtidos globalmente
  • Fabricantes devem disponibilizar provas de forma a aliviar o ónus da prova que recai sobre os consumidores
  • A não‑comunicação de provas levará à presunção de defeito no produto
  • Período de prescrição de 15 anos para danos latentes em vez de 10 anos
  • A defesa baseada no estado‑da‑arte será, contudo, a regra por defeito; os estados‑membros já não poderão derrogar a isenção aplicada aos fabricantes relativa a defeitos científica e tecnicamente impossíveis de descobrir.

A preparação para a AILD iniciou‑se como processo separado na CE devido à opinião de que se lidava com responsabilidades 

diferentes daquelas contempladas pela Diretiva de Responsabilidade Civil do Produtor. Isto porque os sistemas de IA eram vistos como formas tecnológicas com forte influência na sociedade através do controlo e seguimento de cidadãos, como na vigilância sobre certas etnias, análise de grandes volumes de dados, e na tomada automatizada de decisões, exigindo regulamentos específicos para proteger as liberdades civis.

Contudo, durante a preparação das duas diretivas, ficou clara a existência de uma sobreposição considerável em termos de responsabilidade civil e o uso de IA em produtos. As iniciativas estão estreitamente ligadas e formam um pacote único numa abordagem integral à IA.

A AILD inclui:

  • Presunção de causalidade com regras mais estritas para sistemas IA de risco elevado (elevado risco para a saúde, segurança, ou direitos fundamentais)
  • Os tribunais podem ordenar a publicação de provas relevantes relativas ao sistema de IA de risco elevado
  • Proposta AILD a adicionar à lista no Anexo I da Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores como área onde as ações representativas dos consumidores devem ser implementadas pelos estados‑membro

Estabelecer uma base para o funcionamento da responsabilidade civil no âmbito da tecnologia autónoma é um desafio. Se uma tecnologia tiver, por exemplo, sido aprovada para implementação em veículos e, adicionalmente, para utilização no centro de uma cidade, quem é em última análise responsável em caso de sinistro?

A perspetiva de um segurador

Os riscos da IA estão presentes em diversas linhas de seguros e a IA e os produtos e serviços digitalizados implicam vários riscos.

A responsabilidade civil do produtor é a escolha óbvia para cobrir os riscos de responsabilidade civil. Mas outras linhas de seguros podem estar expostas direta ou indiretamente. Podem ser ativadas apólices de acidentes pessoais ou de saúde. As apólices de seguro de habitação também estão na primeira para garantir quaisquer danos causados por produtos de consumo. Os danos causados pela IA são acidentais, conforme exigido pelas apólices multirrisco?
A funcionalidade dos programas de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel também será testada pelos veículos autónomos.

Os complicadas nexos de causalidade e a possibilidade de existirem várias partes a contribuir para um sinistro adicionam complexidade do ponto de vista do seguro e podem resultar na relutância, por parte de algumas seguradoras, em assumir a iniciativa de garantir tais riscos. Um sinistro pode ser causado por uma combinação de vários produtos, sejam os que possibilitam a tecnologia de ligação, os serviços de computação remota, ou outros.

Esta complexidade é acrescida por se tratar de novos riscos acerca dos quais não temos dados estatísticos suficientes para cumprir plenamente os requisitos de risco segurável. Se forem implementadas novas regras de imputação de responsabilidade entre produtores, prestadores de serviços digitais e proprietários e utilizadores do equipamento, a regularização do sinistro pode tornar‑se caótica e dispendiosa para a seguradora de responsabilidade civil de qualquer uma das partes responsáveis.

Nas relações inter‑empresariais, a responsabilidade civil do produtor baseia‑se em contratos e legislação sobre venda de bens e como tal não é dependente da legislação comunitária sobre responsabilidade civil de produtos. Contudo, em caso de danos corporais, a responsabilidade civil de produtos aplica‑se quer o produto seja utilizado em ambiente industrial ou doméstico.

Estabelecer uma base para o funcionamento da responsabilidade civil no âmbito da tecnologia autónoma é um desafio. Se uma tecnologia tiver, por exemplo, sido aprovada para implementação em veículos e, adicionalmente, para utilização no
centro de uma cidade, quem é em última análise responsável em caso de sinistro?

Passos Seguintes

As diretivas propostas ainda não foram finalizadas. Contudo, parece claro que estas reformas se concretizarão. Durante o processo, comentários de diferentes setores, incluindo empresas tecnológicas europeias representadas pela Orgalim, a Federação Europeia de Associações de Gestão de Risco (FERMA) e a Insurance Europe, mostraram‑se negativos.
Estes stakeholders lembraram aos legisladores que existem regimes de responsabilidade civil que já se aplicam a qualquer tipo de dano corporal ou patrimonial e que as novas regras teriam um impacto exclusivamente negativo no desenvolvimento de novos produtos, dada a falta de clareza. Também rejeitaram categoricamente propostas no sentido da obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil para a IA.

Naturalmente, representantes dos consumidores, como a BEUC (Organização Europeia de Consumidores), acreditam que existe necessidade de atualizar a regulamentação sobre responsabilidade civil do produtor e torná‑la abrangente a conteúdos, do produtor e serviços digitais.

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AUTORES

Matti Sjögren

Matti Sjögren

Especialista em gestão de risco de responsabilidades - If P&C Insurance

Matti Sjögren é especialista em gestão de risco de responsabilidades na If P&C Insurance. Tem mais de 36 anos de experiência em seguros de empresas e é especialista em sinistros, subscrição de seguro de responsabilidade civil e gestão de risco em responsabilidade civil. Tem um mestrado em direito pela Universidade de Helsínquia.