Artigo de opinião

Publicado em Edição 16

2023 e o choque com a realidade

É importante não perdermos o foco, mas também não nos deixarmos ofuscar por análises incompletas, reféns da falta de amplitude geográfica. A guerra na Ucrânia, um ano passado desde o seu início, tende a esgotar toda a dinâmica geopolítica na voragem do mediatismo informativo, mesmo que outras geograficamente mais distantes também estejam associadas ao conflito no Leste da Europa. 

Vale a pena, por isso, cruzarmos continentes, oceanos, crises paralelas, líderes menos badalados, tendências de curto e longo prazo e raciocínios menos óbvios, para chegarmos a uma palete mais colorida da política internacional contemporânea, afastando visões monocromáticas de uma realidade cada vez mais complexa e pouco compreendida.

À entrada do segundo ano de guerra na Europa

O ambiente estratégico global tem atravessado uma vertiginosa transformação nos últimos anos. A competição entre as grandes potências, a erosão da ordem multilateral e a crise pandémica precederam a guerra da Ucrânia, que marca o fim da paz europeia e do concerto definido nos anos seguintes ao final da Guerra Fria. Ao longo destes trinta anos, a ordem triunfante procurou acomodar as potências emergentes em organizações internacionais (China na OMC), alinhando interesses em fóruns multilaterais (Conselho NATO‑Rússia) ou através de acordos reforçados pela ONU (Acordo sobre o nuclear do Irão; Acordo de Paris sobre o clima), alargando alianças e organizações a anteriores adversários (casos da NATO e da UE a Leste), numa lógica de alastramento das regras e das instituições em que tem assentado a globalização e a ordem internacional liberal. Ora, a política internacional passou a estar dominada pela polarização entre os Estados que defendem e os que contestam os princípios de legitimidade dessa ordem. Inclusive os próprios méritos das democracias, minando‑as por dentro com líderes populistas de teor autoritário e visões nacionalistas sobre o comércio‑‑livre, a integração de imigrantes ou o papel do multilateralismo institucional. É neste choque sistémico que permanecemos em 2023, sendo a Ucrânia um epicentro de impactos globais.

À entrada do segundo ano de guerra, após meses de resistência heroica e reconquista territorial, Kiev reentra num novo período decisivo. Por um lado, precisa que o rigor do inverno não atrapalhe a recolocação de meios e tropas nas zonas mais hostis do Donbass. Por outro, precisa que as hesitações ocidentais não acabem por condicionar a reconquista do que legitimamente considera ser da sua soberania. Por isso, serão necessárias três centenas de veículos de combate vindos do ocidente, além de umas dezenas de milhares de homens treinados em países da NATO e um apetrechamento substancial da defesa antimíssil providenciada pelos EUA, esperando que alemães, polacos, franceses, britânicos, americanos e restantes aliados se articulem melhor e mais rapidamente. O preço a pagar é cristalizar 20% de um território estratégico no lado russo, beneficiando o agressor de forma duradoura, condicionando uma negociação futura, e definindo, dessa forma, os termos da segurança do continente europeu e das suas democracias. 

Complexos de segurança nevrálgicos

Se o imperativo de segurança na Europa tem epicentro na Ucrânia – embora os Balcãs merecessem uma atenção política mais cuidada ‑, o tal exercício de análise ampliada que sugeri no início não implica o congelamento do nosso olhar sobre a guerra ou outras dinâmicas em curso no continente europeu, antes procura pontos de ligação com esse mesmo epicentro geopolítico. O caso mais importante está a acontecer no sudeste asiático, em particular no Japão que, também pela agressividade russa, acaba de rever as suas principais estratégias de segurança e defesa, revolucionando uma doutrina solidamente acomodada em princípios defensivos e não‑beligerantes desde a Segunda Guerra Mundial. Se a invasão da Ucrânia pela Rússia reavivou a defesa coletiva na NATO, acelerando investimentos e revisões de doutrinas nos aliados e nalguns vizinhos, também reacendeu o imperativo de segurança na fronteira asiática, com quem o Kremlin também partilha memória histórica e tensões estratégicas latentes.

O Japão olha para a sua trilogia de insegurança – Pyongyang, Moscovo, Pequim – e conclui estar a doutrina do pós‑Guerra esvaziada de garantias para assegurar condições mínimas à independência e segurança do país. Essa interpretação sobre o imperativo reformista parece alinhada com os cerca de 70% de adesão popular, 

que convergem na máxima de que o apetrechamento militar dissuasor é indispensável à permanência de Tóquio como grande economia mundial, centro tecnológico de excelência, reserva democrática regional e pólo da livre circulação marítima numa zona de estreitos congestionados, entre eles o de Taiwan. Assim, o Japão investirá 320 mil milhões de dólares nos próximos cinco anos em novas capacidades cibernéticas, numa sexta geração de caças com apoio britânico e italiano, em mísseis de longo‑alcance americanos apoiados em meios navais tecnologicamente avançados, estabilizando o investimento no padrão‑NATO dos 2% do PIB em Defesa. Não é uma mera coincidência, mas a vontade expressa de caminhar na doutrina e nos meios com os aliados transatlânticos, com quem Tóquio alinha também, desde a primeira hora, na aprovação de sanções à Rússia em sede do G7. 

São precisamente estes dois complexos de segurança regionais, o europeu e o asiático, que nos devem prender a atenção nos próximos tempos. De preferência em paralelo, dada a existência do mesmo garante de segurança, os EUA, acelerada pelo comportamento de uma grande potência que, no caso russo, é já uma ameaça materializada; e, no caso chinês, encarada como “o maior desafio estratégico”. No ano em que se comemoram os 40 anos do Tratado de Paz e Cooperação entre o Japão e a China, é fundamental preservar fóruns de diálogo e desanuviamento regionais sem que isso deva conduzir a uma ilusão pacifista que desdenhe o nexo entre a credibilidade de dissuasão militar e uma capacidade diplomática mais construtiva num mundo, apesar de tudo, que persiste em reavivar alguns traços hobbesianos preocupantes.


 

"Este ano de 2023 tem tudo para nos conduzir a uma grande angular analítica e, inevitavelmente, a choques frontais com uma realidade cada vez mais dura e complexa, e que por assim ser, exige muito mais estudo, partilha de conhecimento e bom senso aplicados a cada processo de decisão. Nos governos, nas organizações, nas empresas, nas nossas opções individuais. Porque toda a política e internacional.”

Velhos dilemas de cooperação multilateral

É evidente que os dilemas de segurança mundiais não se esgotam nos continentes europeu e asiático. Infelizmente as guerras civis ainda em curso no Médio Oriente e em África também contribuem para a deterioração da paz e da estabilidade interestaduais a que temos assistido. Contudo, há dois pontos que nos desviam a atenção para aqueles dois continentes: primeiro, pelo facto de estarmos a falar de regiões onde os beligerantes (doutrinais e materiais) possuem capacidade nuclear altamente destrutiva; segundo, porque temos provado, enquanto comunidade política ocidental, que manifestamente temos pouca arte e engenho para dirimir crises graves de segurança no Sahel, na África subsariana, no Corno de África ou no Levante. Ou seja, em cima da erosão da segurança internacional, podemos acrescentar a incapacidade cooperativa na resolução de conflitos duradouros, o que também reduz os méritos da ordem liberal e das suas organizações multilaterais.

Mas não é só de incapacidade na resolução de conflitos que falamos. Também podemos apontar o dedo à incapacidade dos Estados e das organizações multilaterais na melhoria da gestão humanitária das migrações forçadas e mortíferas que vão, por exemplo, povoando o Mediterrâneo de vítimas de guerras, perseguições e do crime organizado. Ou ainda à nossa minimalista abordagem às metas de curtíssimo prazo no combate às alterações climáticas, reduzindo muitas vezes o seu impacto global duradouro a meros ajustes económicos conjunturais nos grandes países industrializados, como se os efeitos das variações climáticas não condicionassem há muito a sobrevivência de povos e territórios costeiros, deslocações maciças de pessoas, aumentos brutais dos bens essenciais, conflitos armados por recursos naturais, eclosão de guerras civis devastadoras e desequilíbrios profundos na biodiversidade.

Não há, como facilmente se percebe, assuntos estanques, dilemas compartimentados, soluções individuais, recursos infindáveis, opções adiáveis. São crises em cima de outras crises, incertezas em cima de tendências mapeadas, escolhas estratégicas difíceis com impactos globais, locais, empresariais e individuais. Também por isso, este ano de 2023 tem tudo para nos conduzir a uma grande angular analítica e, inevitavelmente, a choques frontais com uma realidade cada vez mais dura e complexa, e que por assim ser, exige muito mais estudo, partilha de conhecimento e bom senso aplicados a cada processo de decisão. Nos governos, nas organizações, nas empresas, nas nossas opções individuais. Porque toda a política é internacional.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é atualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.