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Publicado em Edição 13

Memória do Seguro

Sabia que o primeiro tratado de seguros foi escrito por um jurist português?

Para compreender o presente, e preparar o futuro, é sempre crítico conhecer o passado. Para saber mais sobre a história dos seguros em Portugal, a FULLCOVER visitou a Exposição Permanente – Memória do Seguro (EPMS), na sede da APS – Associação Portuguesa de Seguradores, em Lisboa.

E conversou com Fernanda Rollo, Presidente da Comissão de Acompanhamento da EPMS e professora da Universidade Nova, e com Alexandra Queiroz, Diretora-Geral da APS e uma das grandes mentoras do projeto.

Da ideia ao projeto

Inaugurada em maio de 2019, a exposição é uma iniciativa da APS, das suas associadas e do Chapas – Clube História e Acervo Português da Actividade Seguradora. “Surgiu a partir de uma ideia do Dr. Ruy de Carvalho (primeiro presidente da APS e seu Presidente honorário) quando escreveu os dois livros sobre História do Seguro e do desafio do Chapas para expor o património que tinha em sua posse”, conta-nos Fernanda Rollo.A exposição visa, por um lado, identificar, preservar e valorizar a história e o património dos seguros em Portugal, envolvendo os diversos atores que lhe estão associados, e, por outro, contribuir para a promoção e compreensão da atividade seguradora e o seu relevante papel na sociedade.
 

A história dos seguros
 
“A história dos seguros confunde-se e é simultaneamente parte e reflexo da nossa História. No caso de Portugal, uma história com mais de 700 anos, desde o tempo de D. Dinis, refere Fernanda Rollo.

A atividade seguradora tem acompanhado os momentos mais determinantes da nossa história, num permanente diálogo com a sociedade. Ao longo dos séculos tem procurado responder às mudanças - sejam elas a nível comercial, económico, ou dos transportes, entre outras - e garantir que as sociedades contam com a atividade seguradora, para as acompanhar, estimular e proteger.

“Conhecer o papel do seguro na sociedade em que vivemos, com crescente propensão ao risco, seja por ação das alterações climáticas ou por novos hábitos e estilos de vida, adaptando a atividade às necessidades dos cidadãos, das empresas e do país é fundamental para preparar o futuro”, destaca.

Diálogo permanente com a sociedade
 
Promovendo uma cultura de conhecimento e responsabilidade, nomeadamente junto dos mais jovens, a EPMS pretende demonstrar como os seguros estão presentes em todas as dimensões do nosso quotidiano.     
Na exposição, convivem, lado a lado, documentos e objetos antigos e quadros digitais interactivos; fotografias de gente (improvável) que esteve ligada aos seguros - como Luciano Pavarotti ou Saramago – e uma colecção de chapas, emblemas antigos das seguradoras afixados nos edifícios das seguradoras, um património que constituía uma parte relevante do conjunto de garantias financeiras exigidas a quem se dedicasse ao métier da assunção de riscos.

"Evoca os principais momentos da história da atividade seguradora, remontando ao século XIII, quando surgiram os primeiros contratos de mercadores italianos ligados ao comércio marítimo para se protegerem de naufrágios, pirataria e roubos e, em Portugal, D. Dinis ordenou aos mercadores que criassem um fundo de proteção às vítimas de perdas de navios e/ou produtos", explica.

A exposição, para além do Passado, tem uma parte dedicada ao Presente, interativa, com os principais seguros existentes, e algumas curiosidades sobre seguros internacionais mais invulgares; focando o tema das alterações climáticas e catástrofes com impacto no setor. Tem ainda uma área dedicada ao Futuro, com os recursos criados pela APS para o público mais jovem, tal como o microsite Seguros e Cidadania, que congrega vídeos, livros e outras informações relevantes para o estudo do tema dos seguros.   

Na realidade, a EPMS tem uma forte componente educativa, especialmente junto da comunidade escolar. “Estamos a trabalhar num programa de atividades específicas para crianças, consoante as idades, para desenvolverem conceitos relacionados com o setor segurador - o que é o seguro, a sua importância, com recurso a jogos, quizzes, entre várias outras atividades. Outra das iniciativas é a coleção escrita por Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, na linha da colecção “Uma aventura”, mas com aventuras reais no mundo dos seguros, e a coleção de banda desenhada sobre Grandes Catástrofes como o naufrágio do Titanic. É interessante mostrar aos mais jovens a conjugação destes dois mundos: o do espólio de seguros com os objetos antigos que reunimos na exposição e a parte digital, interativa. Até as chapas das seguradoras, com o seu design lindíssimo e colorido, despertam muito a sua atenção”, salienta Alexandra Queiroz.

Para Fernanda Rollo, para além do interesse histórico desta exposição, há uma aproximação da atividade seguradora às pessoas, uma chamada de atenção para um conjunto de temas, inscrevendo assim um pressuposto importante, não só de responsabilidade cultural mas também social e ambiental. "O tema da sustentabilidade, por exemplo, vai obrigar a atividade seguradora a repensar-se; basta pensar em cidades, mobilidade e seguro automóvel para isso ser claro. Esta exposição tem esta dinâmica pedagógica, pretende contribuir para a literacia financeira e para uma cultura seguradora."

Preservar um património de todos
 
A EPMS é um projeto em construção, enriquecido com uma vertente colaborativa. “O grande desafio desta exposição é conseguir demonstrar o papel dos seguros em termos de salvaguarda e valorização das pessoas e do património. Mas, para mostrar o quão importante é o seu papel, todos os players do mercado têm de trabalhar de forma colaborativa e solidária. Gostaríamos que as companhias, corretores e outros stakeholders contribuíssem para essa divulgação, não só junto dos seus colaboradores, mas da sociedade em geral”, apela Fernanda Rollo.

Para tal, é fundamental que as entidades do setor conheçam o espólio que possuem: “Por vezes estão preciosidades esquecidas dentro de caixotes. A nossa equipa ajuda-as a descobrir esse espólio e, mais importante, a conservá-lo e, desta forma, contribuir para a preservação do património e da memória do setor e da atividade seguradora em Portugal”.  
 

UMA HISTÓRIA INSÓLITA
 
Na inauguração da exposição, um dos objectos que mais interesse suscitaram foi uma faca de mato, propriedade da Fidelidade, uma magnífica peça de joalharia do séc. XIX, cuja história algo insólita vale a pena contar.

A partir de uma peça inteira de prata, o artífice Raphael Zacarias da Costa criou, ao longo de onze anos de trabalho árduo, uma faca de mato, obra única de incalculável valor. Através de um verdadeiro trabalho de génio, esculpiu no punho e na bainha da faca (de 63 cms de comprimento no total) 130 cabeças de animais, interligadas com uma perícia extraordinária, reproduzindo a natureza duma forma incrível.

Inicialmente destinada ao rei D. Fernando, a venda não se concretizou. Não conseguindo, encontrar comprador para o objecto em Portugal, o seu proprietário decidiu enviá-la para Londres, um grande mercado e local de residência de donos de grandes fortunas, que certamente se interessariam por tão precioso objecto. A faca de mato seguia, assim, a bordo do navio “Cádiz”, em Maio de 1875 quando este naufragou ao largo de Brest, desaparecendo nas águas do mar, a par da maioria dos tripulantes e passageiros. O seu proprietário, Estevão de Sousa, que tinha contratado com a Fidelidade o seguro da referida peça, foi indemnizado no valor de £7.000.

A seguradora, nos anos que se seguiram, envidou vários esforços no sentido de recuperar a peça, o que não se revelou tarefa fácil, uma vez que o navio se encontrava numa zona bastante profunda e com correntes tão perigosas que o governo inglês proibiu os seus mergulhadores de colaborarem no salvamento, devido ao elevado risco.

A empresa especialista londrina contratada para recuperar a faca de mato conseguiu encontrá-la após seis semanas de trabalho árduo debaixo de água.

A faca seguiu depois para Londres, onde foi limpa e restaurada, tendo finalmente chegado a Lisboa em 20 de Julho de 1876. Em 1878, por ocasião da Grande Exposição Universal de Paris, ocupou um lugar de honra entre as mais importantes peças da joalharia portuguesa, sendo uma das peças mais importantes do espólio do sector segurador português.

 
Há quem considere a “faca de mato”, pelo seu valor artístico, como um dos “salvados” mais importantes da nossa história seguradora. Para mim, mais do que isso, ela é sobretudo um testemunho e uma homenagem a todos os profissionais de seguros, que, numa época em que as comunicações e os recursos tecnológicos eram limitados, persistiram em recuperar e valorizar o património da empresa, que muitos consideravam para sempre perdido.
Jorge Magalhães Correia Presidente, Fidelidade

Sabia que...
 
O primeiro tratado de seguros foi escrito pelo jurista português Pedro de Santarém, obra originalmente publicada em 1552?

Pedro de Santarém terá nascido nesta cidade portuguesa – daí o nome – mas viveu, estudou e redigiu o seu Tratado em Itália, onde se pensa que exerceria funções de cônsul de Portugal.

Em 1552 escreveu o Tractatus de Assecurationibus et Sponsionibus, que constitui ainda hoje, “...decorridos 500 anos, um estudo de particular relevo no âmbito dos seguros…que, em muitos aspectos, mantém plena actualidade…”, nas palavras de Pedro Romano Martinez, professor catedrático de Direito, no prefácio que escreveu para a edição da obra promovida pela APS1, em 2018.

Um Tratado eminentemente prático, escrito para dar resposta a questões concretas que lhe eram colocadas pelos mercadores da época. Exemplos são a validade do contrato de seguro face a actos ilícitos, a noção de caso fortuito, e a referência ao contrato de seguro como um contrato de boa-fé. Segundo Pedro Romano Martinez este tratado “...é um primeiro estudo jurídico, organizado de forma sistemática, sobre os seguros marítimos, com referências específicas à relação entre o risco e o prémio, que ainda hoje são válidas mesmo em relação a outros seguros”.

Ao longo do Tratado encontramos conceitos tão familiares e actuais como o dolo, o valor devido pelo segurador em caso de sinistro, objecto seguro, e resolução do contrato. Também é referida a figura do “seguro do seu seguro”; não se tratando aqui propriamente de resseguro, mas de um segundo seguro (aproximando-se mais da figura do co-seguro, ou pluralidade de seguros), que cobre o risco de o primeiro não pagar. Como refere Pedro Romano Martinez, " ...quinhentos anos depois, as respostas dadas pelo jurisconsulto mantêm, quase todas, plena actualidade e, por vezes com diferente terminologia, encontram consagração em regras jurídicas actuais."

 

 SANTARÉM, Pedro de - Tratado de seguros de Pedro de Santarém. Lisboa: APS, 2018. ISBN 978-972-27-2676-4

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