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Os Três Mares e a importância do “Corredor Médio”

Lançada em Dubrovnik em 2015 e com 12 países da UE a compor 30% do seu território, a Iniciativa dos Três Mares (Báltico, Negro e Adriático) desenha uma rede de abastecimento energético, comunicações e infraestruturas que, objetivamente, procura retirar à Rússia o domínio sobre vários países pela via da energia e diminuir a influência política da Alemanha no quadro das decisões comunitárias.

Não surpreende que o fórum tenha sido pouco apreciado em Berlim, dado que os 1340 kms do pipeline Backbone, que ligam Lwówek (Polónia) a Sisak (Croácia), tal como o gasoduto entre Swinoujscie, entre a costa Báltica da Polónia e as ilhas Krk na Croácia, em pleno Adriático, são dois pilares de um corredor energético norte-sul concorrente ao Nord Stream 2, projetado antes da guerra na Ucrânia para conectar a Alemanha e a Rússia, contornando a Polónia. Se o projecto serve à Croácia para se redimensionar para lá dos Balcãs Ocidentais - expressão que muitos políticos locais evitam referir -, também serve à Polónia no roteiro de ligação preferencial às exportações de gás natural liquefeito, independência face à Rússia e maior equilíbrio com o colosso alemão.

A Iniciativa dos Três Mares (I3M) não só ganhou ímpeto com a invasão russa da Ucrânia, como alargou o seu mandato, promovendo um historial de projectos bem-sucedidos. Compreendendo as nuances regionais e os desafios continentais, como a segurança energética e a guerra, a iniciativa evoluiu para uma plataforma que permite dar resposta a necessidades prementes. O agrupamento surgiu de uma história comum de mudanças geopolíticas e transformações económicas, com as nações participantes a reconhecerem a importância da conetividade e da colaboração para a promoção dos seus interesses coletivos. É um bom princípio no Centro e Leste da União Europeia, nem sempre cooperante e com uma longa história de disputas políticas e territoriais. Ao reunir recursos e conhecimentos, pretendem colmatar lacunas infraestruturais de longa data, estimular o crescimento económico e reduzir a dependência de intervenientes externos. Os projectos recentes no âmbito da I3M demonstram empenho em reforçar a conetividade e a resiliência regionais, como são exemplo as infraestruturas como a Via Carpathia e o Rail Baltica, as quais visam melhorar as redes de transporte, facilitando a circulação de bens e pessoas em toda a região. Além disso, projectos no domínio da energia, como o Baltic Pipe e a sincronização das redes elétricas, reforçarão ainda mais a segurança energética, reduzindo a vulnerabilidade dos Estados a perturbações externas, reforçando ainda a sua autossuficiência.

Foi também criado um Fundo de Investimento da Iniciativa dos Três Mares, base do impacto prático que está a ter no desenvolvimento da região. Em apenas quatro anos, o fundo investiu mais de 700 milhões de euros em projectos nas energias renováveis, transportes, logística e infraestruturas digitais. O Fundo mostra ainda boas condições para uma colaboração com instituições regionais importantes, como o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD), fundamental em determinados sectores. Por exemplo, o investimento do fundo no porto de Burgas, na Bulgária, parece destinado a criar um centro alternativo no Mar Negro - ele próprio no centro da atual tensão internacional -, o qual oferece uma entrada competitiva no mercado europeu para os comerciantes internacionais. Com infraestruturas já instaladas e expansíveis, será provavelmente um importante centro logístico que facilitará a reconstrução da Ucrânia nos próximos anos.

Outro exemplo, foi a aquisição de locomotivas na Polónia pela Cargounit - detida a 100% pelo Fundo - sendo a maior na história do país. Trata-se também de uma declaração de intenções destinada a melhorar a conetividade ferroviária e a cadeia de abastecimento mais alargada entre os países parceiros. Além disso, os investimentos em infraestruturas portuárias e ferroviárias visam aumentar a capacidade de exportação industrial da União Europeia, beneficiando a sua economia e reanimando os mercados e o comércio internacional. A constatação de que a teoria se tornou realidade é, sem dúvida, um ponto de viragem, pois abre portas a uma região historicamente caracterizada por um potencial inexplorado. Apesar de tanta dureza histórica, vivida ainda num presente que se traduz em guerra, a região tem caminhos conjuntos de desenvolvimento sustentado, respondendo a necessidades prementes.

Para além das melhorias nos transportes, os projectos de energias renováveis visam reforçar a resiliência energética numa região largamente dependente das fontes de energia russas. Por exemplo, o investimento do Fundo no grupo polaco R.Power Renewables é indicativo não só da transição mais alargada para estas formas de energia, mas também da intenção do bloco em trabalhar com outros parceiros europeus, inclusive Portugal, onde já está presente. Outro exemplo é o investimento do Fundo na austríaca Enery, uma plataforma de renováveis com grande pendor na energia solar, e que se expandiu a partir de então para mais dez países da região.

A maior realização até à data é o facto de se ter destacado a necessidade dramática de investimento em infraestruturas ao longo da linha Norte-Sul e o potencial geopolítico de fazer avançar a integração dos mercados euro-asiáticos. O valor crescente da marca refletiu-se na última cimeira com a inclusão da Grécia como país parceiro, alargando o âmbito do projeto ao sul da Europa. A Ucrânia e a Moldova também foram confirmadas como nações parceiras, demonstrando o potencial da I3M para servir como um instrumento de expansão da integração e da estabilidade europeias. Além disso, a I3M está a atrair a atenção mundial. Na última cimeira, estiveram presentes várias delegações asiáticas, incluindo um contingente japonês de alargado. Além disso, a embaixada sul-coreana na Roménia tem estado ativa na promoção do investimento na Europa Central. Seul também desenvolveu uma relação de cooperação em matéria de defesa com a Polónia e, por exemplo, garantiu um voo direto com Lisboa. Isto reflete a forma como as potências do Indo-Pacífico - incluindo a Coreia do Sul, o Japão, Taiwan e a Índia - veem os benefícios da estabilidade na Europa e a sua prosperidade como uma oportunidade económica para intensificar uma relação estratégica de forma a contrabalançar a China.

Por último, reconhece-se cada vez mais que uma forte infraestrutura norte-sul na Europa pode ser um importante fator de integração euro-asiática, reforçando as ligações com a Finlândia, bem como o acesso e a presença da Europa no Ártico. Por seu lado, através do Mar Negro, liga-se ao "Corredor Médio" pelo Cáucaso, tendo aqui a Geórgia um papel de pivot, e pela Ásia Central até aos principais mercados asiáticos, principalmente a China, ligação que pode ainda integrar, de forma mais lata, o Mediterrâneo, o Médio Oriente, o Indo-Pacífico, África e, através do Atlântico, todo o Ocidente. Numa época em que ficam expostas as vulnerabilidades e o valor da segurança das cadeias de abastecimento logístico diversificadas e dos fornecimentos de energias, a interligação destas rotas e infraestruturas está a conquistar o interesse das empresas e dos Estados.

Antes da guerra na Ucrânia, a China parecia ambivalente em relação à promessa do “Corredor Médio”. Chegar à União Europeia através da rota tradicional do Norte, passando pela Rússia, era três vezes mais rápido. Essa rota, embora geograficamente mais longa, apresentava melhor infraestrutura ferroviária, menos controlos aduaneiros e o evitar do Mar Cáspio. Assim, Pequim considerou o novo corredor como, na melhor das hipóteses, complementar. Entretanto, a Turquia e os países do Sul do Cáucaso e da Ásia Central que iriam beneficiar de melhorias nas infraestruturas e, eventualmente, de

do trânsito de mercadorias, não dispunham de recursos para efetuar os investimentos necessários para revigorar a rota. No entanto, em 2022, o trânsito de contentores cresceu 33% em comparação com o ano anterior. Isto deve-se ao facto de a China ter desviado grande parte das suas exportações com destino à UE da rota do Norte, devido às sanções ocidentais aplicadas à Rússia, para a rota marítima do Estreito de Malaca até ao Canal do Suez e o “Corredor Médio”.

Em outubro, a Geórgia acolheu o quarto Fórum da Rota da Seda em Tbilisi, adiado devido à pandemia. O objetivo foi tirar partido da sua posição estratégica e da rede de acordos de livre comércio com a UE e a China. Um dos resultados foi o anúncio da criação de uma empresa comum - o Corredor Central Multimodal - com o Cazaquistão e o Azerbaijão, com o objetivo de facilitar a cooperação intergovernamental entre os caminhos-de-ferro dos três países que dê escala a um operador logístico comum, entretanto criado. Em 2021, o comércio do Azerbaijão, da Geórgia e do Cazaquistão constituiu cerca de dois terços dos fluxos do “Corredor Médio”, valor que duplicou em 2022. Por exemplo, o Cazaquistão e a Geórgia registaram um aumento de 45% no volume de negócios, enquanto o Azerbaijão registou um aumento de 72% em comparação com o biénio 2019-21. Em consequência, várias projeções estimam um crescimento de cerca de 30% do comércio entre a China e a UE até 2030.

Há, por isso, duas conclusões a tirar. Primeira, o investimento integrado em infraestruturas, conexões, segurança comercial e autonomia logística no continente europeu tornam as suas economias mais dinâmicas e o esbatimento das desigualdades mais concretizável. Isso é fundamental para diminuir a contestação nas democracias e retirar espaço aos populismos. Segundo, a integração económica com regulação e reciprocidade com os mercados asiáticos é um meio para retirar influência comercial e económica à Rússia e manter a China próxima dos interesses europeus. Tudo isto no quadro geopolítico atual é de importância capital.  

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).