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Os houthis e o comércio mundial

Os últimos meses têm exposto diariamente a ligação cada vez mais íntima entre os choques geopolíticos, a conflitualidade interétnica e as alterações forçadas na economia e no comércio internacional.

Os últimos meses têm exposto diariamente a ligação cada vez mais íntima entre os choques geopolíticos, a conflitualidade interétnica e as alterações forçadas na economia e no comércio internacional. Estados, empresas e cidadãos vivem numa espiral de eventos sucessivos, quase todos conectados, com causas complexas e efeitos distópicos difíceis de monitorizar ou sequer antecipar, todos suficientemente disruptivos para exigir outra preparação nos processos de decisão políticos e económicos.

É o caso das várias camadas de dramas, atores e choques que interagem em permanência no Médio Oriente e influenciam as opções dos grandes produtores de petróleo e gás, as dinâmicas em organizações internacionais, o clima emocional nos campus universitários ocidentais, a coreografia e a eficácia da diplomacia, a sustentabilidade dos alinhamentos geopolíticos, ou a entrada em cena de grupos desvalorizados pelo exterior. É o caso dos houthis no Iémen e dos impactos dos seus ataques às frotas dos grandes operadores mercantes entre o Índico e o Atlântico, através do Mar Vermelho, ligando os grandes portos asiáticos de Singapura e da China aos principais portos europeus em Roterdão ou Hamburgo, rota responsável por 40% do tráfego comercial entre a Europa e a Ásia. 


Mas para lá chegarmos, vale a pena olhar para a região alargada do Índico, oceano circundado mais de trinta países que representam um terço da população mundial e que expõem a importância do mar e das faixas costeiras, rotas que correspondem a 90% do comércio global. É, aliás, nas zonas litorais que o crescimento demográfico, as alterações climáticas, a elevação dos níveis do mar, a escassez de água potável e os extremismos políticos adquirem um rosto vividamente geográfico. Entre o Mar Arábico e o Golfo de Bengala vai um arco da Somália à Indonésia, uma região caracterizada por instituições tíbias, infraestruturas débeis e por populações jovens, muitas delas seduzidas pelo extremismo. Esta é uma geografia que abrange o mar Vermelho, o mar Arábico, o golfo de Bengala e os mares de Java e do Sul da China. 


No Índico também se encontram as principais rotas de transporte de petróleo, como os pontos de estrangulamento da navegação do comércio mundial – os estreitos de Bab el Mandeb, de Ormuz e de Malaca. Quarenta por cento dos hidrocarbonetos passam pelo estreito de Ormuz e 50% da capacidade das frotas mercantes do mundo circula pelo estreito de Malaca, tornando o Índico no mais ocupado ponto interestadual do globo. É neste quadro alargado que o recente agravamento das condições de segurança comercial entre o Mar Vermelho e o Mar Arábico, interligados pelo golfo de Áden, como expressão do prolongamento da longa guerra civil no Iémen e, sobretudo, da capacidade militar revelada pelos houthis, merece ser analisada.  

 A mobilização dos houthis começou no final da década de 1980 como um movimento revivalista que procurava terminar com a sua marginalização religiosa, política, económica e cultural a partir da criação da República Árabe do Iémen, liderada por Ali Abdulah Saleh entre 1978 e 2017, ano em que o grupo xiita o assassinou na capital Sanaa. As sementes da tensão sectária foram semeadas ao longo de três décadas entre sunitas maioritários, apoiados pela Arábia Saudita, e os houthis xiitas apoiados pelo Irão. Sem surpresa, o governo iemenita enfrentou vários ciclos de guerra civil de 2004 a 2010, já num quadro exacerbado de invasão americana do Iraque, sendo que a dinâmica explosiva e mortífera mais atual ocorre desde 2014, já num contexto de guerra civil aberta na Síria e de intermitente beligerância entre Israel, o Hamas e o Hezbollah.  

Avançando no tempo, já no quadro da resposta militar israelita em Gaza, após o ataque do Hamas em outubro de 2023, o porta-voz militar dos houthis abriu as hostilidades recentes ao divulgar imagens de um navio israelita em chamas, capturadas por câmaras de sequestradores houthis e enviadas para todo o mundo, as quais mostravam os seus membros fortemente armados saltando de um helicóptero para o convés do Galaxy Leader, um cargueiro propriedade de um israelita, capturando este e cerca de vinte tripulantes. No início de dezembro, outra declaração ampliou a ameaça a “navios de qualquer nacionalidade com destino à entidade sionista”, embora se conclua que os ataques seguintes mostram que a ameaça também abrange o transporte marítimo sem uma ligação clara com Israel. Até ao momento, mais de 200 drones e mísseis de curto e longo alcance foram lançados sobre navios internacionais com ligações a mais de cinquenta países, fazendo dos houthis um fator disruptivo para lá do Iémen, surpreendendo pela sua capacidade militar e vontade em disputar a segurança americana, israelita e de outros aliados. Estava assim em marcha a globalização dos efeitos do arco xiita ativável no Médio Oriente.  

O Mar Vermelho é uma das principais artérias para o comércio global. Cerca de 12% do comércio global de petróleo e de 8% de gás natural liquefeito passam pelo Mar Vermelho. Os mercados europeus, pela diversificação de importadores em resultado da invasão russa da Ucrânia, aumentaram no último par de anos em 60% as suas compras de petróleo através desta rota, o que releva a sua importância. O acesso ao Mar Vermelho requer passagem pelo Bab al Mandeb — um estreito de cerca de 20 milhas de largura com o Djibouti a oeste e Iémen a leste. Várias grandes empresas de transporte — sete das 10 maiores empresas de transporte, incluindo a Maersk e a BP — tomaram a decisão de interromper o transporte através deste corredor e muitas outras passaram a usar a rota mais a sul através do Oceano Índico, ao redor do Cabo da Boa Esperança e depois pela costa ocidental da África. Com 25% do tráfego desviado no último mês, esta última rota tem mais dez a doze dias de navegação entre os portos asiáticos e europeus, o que aumenta substancialmente os custos (duas a cinco vezes a taxa de frete) e os prazos de entrega, além de enfrentar novos pontos de pirataria ao largo do Golfo da Guiné. Perante os níveis de risco e insegurança marítima, com impactos económicos geograficamente alargados, os EUA e a União Europeia anunciaram uma coligação naval multinacional para patrulhar a parte sul do Mar Vermelho e neutralizar no território do Iémen pontos nevrálgicos do poder militar houthi, com meios vindos da Europa, Ásia, Oceânia e Médio Oriente, como o Reino Unido, Bahrein, França, Itália, Países Baixos, Noruega, Austrália, Coreia do Sul e Japão. Significativamente, a coligação não inclui a China, que tem uma base naval no Djibouti e olha para o Mar Vermelho como ponto fulcral ao sucesso da Iniciativa Faixa e Rota.

O impacto no comércio global é significativo: os prémios de seguro dispararam e várias das maiores empresas de transporte de contentores viram-se forçadas a alterar os seus planos estratégicos e a assumirem os riscos de alterações de rota. Viagens mais longas, afetarão as cadeias de abastecimentos e, em última análise, podem ter impactos nos preços para os consumidores. Por exemplo, o sector têxtil português, mais dependente das matérias-primas da Ásia, já foi afetado pelo aumento para o triplo dos fretes marítimos. No setor da distribuição, têm sido sobretudo os impactos dos atrasos de duas semanas nas entregas no segmento do retalho especializado (eletrónica, informática e mobiliário). As grandes empresas automóveis com fábricas em Portugal estão já a prever aumentos com os custos de produção, e o setor das energias renováveis já sente os atrasos na entrega de painéis solares, com efeitos nos custos e implementação de projetos. A manter-se o nível de insegurança e disrupção logística na região, pode haver um impacto no ciclo inflacionista, em queda nos últimos meses, e nos preços das matérias-primas, pondo em causa muitas das medidas nacionais e europeias dos últimos tempos, e com isso afetar a recuperação económica, sobretudo na zona euro.

Após dez anos de guerra civil no Iémen, altamente destruidora de vidas civis, mas de certa forma lateral às prioridades da maior parte da comunidade internacional – isto apesar dos houthis terem lançado mais de mil mísseis e drones para a Arábia Saudita, além de atingirem alvos nos Emirados Árabes Unidos, finalmente realizámos que dificilmente uma guerra civil é um assunto interno de um povo, que o apetrechamento militar de grupos não-estatais atingiu uma sofisticação destruidora, e que um quadro aparentemente localizado de conflitualidade, facilmente extravasa para fora, seja no plano das emoções ideológicas, seja nos efeitos geopolíticos, comerciais e humanitários à escala global.

Mais uma vez, toda a política é internacional. Até os houthis o sabem.

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é atualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.