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O mito do “Sul Global”

A rivalidade e a competição entre os Estados Unidos e a China reavivou dinâmicas bipolares que remetem para a Guerra Fria, quando grande parte do mundo definiu as suas posições em função desse equilíbrio de poder. A agressão de Moscovo contra a Ucrânia apenas intensificou a pressão sobre os países em desenvolvimento para escolherem um lado entre o Ocidente democrático e as autoritárias China e Rússia – uma escolha a que muitos resistem. Enquanto isso, uma sucessão de choques sistémicos – pandemia, guerra na Ucrânia, emergência climática – ressaltaram as desigualdades brutais no centro da economia mundial e a vulnerabilidade das nações mais expostas aos diversos choques, sobretudo as de menor capacidade económica e de maior endividamento externo.

Neste quadro, a expressão “Sul Global” instalou-se no léxico jornalístico, político e diplomático de uma forma demasiado acrítica, como se de uma realidade homogénea se tratasse, refletindo uma quase-entidade geopolítica de força galopante na definição dos eventos internacionais. Esta leitura carece de adesão à realidade, quer política, quer geográfica. No entanto, tem sido vários as publicações e as declarações de figuras políticas a usar o termo com notável frequência. Em novembro passado, aquando da ultrapassagem da fasquia de oito mil milhões pela população mundial, António Guterres dizia que "muitos países do Sul Global enfrentam enormes dívidas, o aumento da pobreza e da fome, e os impactos crescentes da crise climática". Outros, como o presidente do Banco Mundial, Ajay Banga, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o seu conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, repetiam a expressão, normalizando a ideia de uma coesão inerente ao bloco. Por seu lado, alguns líderes das próprias nações que o rótulo pretende descrever abraçaram-no, como o primeiro-ministro indiano Narenda Modi, aquando de uma conferência de imprensa na Casa Branca, em junho, quando afirmou pretender, durante a presidência do G20, querer "dar voz às prioridades do Sul Global".

Consta que foi Carl Oglesby, escritor americano e ativista da Nova Esquerda, quem aparentemente cunhou o termo "Sul Global", em 1969. Escrevendo na revista Commonweal, no auge da Guerra do Vietname, terá observado que "o domínio do Norte sobre o Sul global (...) convergiu para produzir uma ordem social intolerável". Na época, a maioria dos analistas ocidentais tratou de dividir o mundo em três partes, tal como retratado pelo economista e demógrafo francês Alfred Sauvy, em 1952, os quais incluíam um "Primeiro Mundo" composto pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais; um "Segundo Mundo" composto pela União Soviética e seus satélites no bloco de leste; e um "Terceiro Mundo" constituído por nações "em desenvolvimento" e muitas vezes não alinhadas com nenhum dos anteriores hemisférios, muitas delas emancipadas das suas anteriores potências coloniais. A partir de então, podemos convergir o conceito de “Sul Global” com o de “Terceiro Mundo”, com mais força na década de 1970, perante o apelo de uma Nova Ordem Económica Internacional.

Na década seguinte, ganhou nova notoriedade com o relatório Brandt, trabalhado por uma comissão liderada pelo ex-chanceler da Alemanha Ocidental Willy Brandt, o documento distinguia países com PIB per capita comparativamente mais alto – concentrados no hemisfério norte – e os mais pobres, a maioria a sul do que ficou conhecido como a linha Brandt, uma fronteira imaginária que vai do Rio Grande ao Golfo do México, atravessa o Oceano Atlântico, atravessa o Mar Mediterrâneo e atravessa as vastas extensões da Ásia Central até ao Oceano Pacífico. Claro que numa perspetiva geográfica, o mapa era altamente falível, já que muitas nações designadas como "meridionais", como a Índia, estão no hemisfério norte, enquanto outras, como a Austrália e a Nova Zelândia, "setentrionais", estão localizadas abaixo da linha do Equador.

Após o fim da Guerra Fria, o "Terceiro Mundo" caiu gradualmente em desuso, desde logo porque o próprio “Segundo Mundo” tinha desaparecido, mas também pelo caráter pejorativo que se lhe aplicava, conotando um grupo de nações atrasadas e instáveis atoladas na pobreza. Em comparação, o "Sul Global" poderia oferecer um rótulo mais neutro e atraente. Assim, a expressão tornou-se sinónimo do Grupo dos 77, um conjunto de países pós-coloniais e em desenvolvimento que se uniram em 1964 para defenderem interesses económicos comuns e aumentar a sua capacidade de negociação na ONU. Hoje, o mesmo grupo ascenderá a 134 países com outra capacidade reivindicativa, tendo a ONU lançado várias iniciativas para responder às suas necessidades e aspirações, incluindo um Gabinete das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul. Geograficamente, o termo refere-se aos 32 países do hemisfério sul, em contraste com os 54 países que se encontram inteiramente ao norte dele. Basta dizer que praticamente dois terços do continente africano fica precisamente a norte do Equador, para percebermos a fragilidade do conceito. No entanto, é muitas vezes usado de forma enganosa como abreviatura para uma maioria global, mesmo que a maioria da população global esteja a norte. Por exemplo, ouvimos frequentemente dizer que a Índia, o país mais populoso do mundo, e a China, o segundo mais populoso, estão a disputar a liderança do Sul Global, tendo ambos realizado recentemente conferências diplomáticas para esse efeito. Ora, ambos estão no hemisfério norte.

Além do elemento puramente geográfico, utilizar o Sul Global como quadro de referência torna muito mais difícil compreendermos as complexas realidades desses países e regiões. Afinal, o que têm em comum a China e o Peru? Ou o Qatar e a Costa Rica? E a Tailândia e a Namíbia? Agrupar estes e outros países numa única categoria, colocando-a nuns antípodas de um suposto “Norte Global”, é uma falácia também ela política. A verdade é que sendo o “Sul Global” um termo intelectualmente esquivo, é igualmente emocionalmente projetável, por poder capturar algumas esperanças à solta no sistema, legítimas e justificadas, diga-se, entre elas um maior equilíbrio político e económico entre regiões e potências emergentes, incluindo aspirantes a assentos no Conselho de Segurança da ONU, como Brasil, Índia e Nigéria, até a pequenos Estados como Benim, Fiji e Omã.

O rótulo genérico também ignora a diversidade de regimes políticos e a qualidade da governação entre os seus supostos membros. Segundo a Freedom House, na avaliação do critério sobre “direitos políticos e liberdades civis", as pontuações dos países do “Sul Global” variam numa grande angular sem qualquer identidade comum, de "não livre" no Sudão do Sul ou na Síria, a "livre" como no Uruguai. A marca “Sul Global” também não fornece muitas informações sobre uma coerente orientação geopolítica dos seus membros, como nos demonstram alguns posicionamentos perante a guerra na Ucrânia. Quando a Assembleia Geral da ONU votou, em fevereiro de 2022, uma resolução exigindo a retirada imediata da Rússia, o “Sul Global” dividiu-se, com mais de 60% do lado da Ucrânia e aproximadamente um terço abstendo-se. Nas cinco resoluções seguintes, o quadro não se alterou sobremaneira. Já sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU, os países considerados parte do mesmo conceito vão mostrando as suas divisões, uns favorecendo membros permanentes adicionais e outros recusando apoiar esse passo.

Uma das muitas tragédias da Guerra Fria foi a tendência para se tratar o então “Terceiro Mundo” como um terreno indiferenciado na competição entre superpotências numa lógica de soma zero, em vez de se envolverem as nações de forma individual, em lógicas de mútuo reconhecimento e interesses convergentes, como atores de direito próprio com as respetivas identidades, interesses e motivações políticas. Para evitar repetir os erros do passado, os decisores ocidentais deviam evitar consolidar um “Sul Global” como entidade única, tentando estratégias de envolvimento e integração de países cruciais como o Brasil, a Índia, a Indonésia, a África do Sul ou a Nigéria. É do interesse das democracias salvaguardar a sua coesão, mas também evitar uma construção sistémica assente em blocos divergentes que apenas tornam estanques as lideranças mais autocráticas e imponentes, dificultando pontes e estratégias de convergência. Pequenos países como Portugal, para mais com a radial de relações globais que tem e o perfil de país que valoriza, é dos que mais tem a ganhar com a diluição da lógica de blocos antagónicos, geograficamente fúteis e politicamente inconsistentes.

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
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