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O Irão em camadas
Desde os grandes protestos de 2009 muita coisa aconteceu dentro e fora de portas do Irão. Em 2009, o chamado “movimento verde” tinha uma clara natureza política enquanto reação à reeleição do presidente Ahmadinejad, ato considerado pelos manifestantes como fraudulento: “onde está o meu voto?”, era o grito que mais se ouvia nas ruas de Teerão.
O derrotado, Mir Hossein Moussavi, ex-primeiro ministro durante os longos e traumáticos anos da guerra Irão-Iraque, foi o principal rosto desse movimento de oposição. Na vaga seguinte de oposição em 2018, não havia, porém, uma liderança clara nem sequer um núcleo duro facilmente identificável como tal. E também não se pode dizer que existisse uma natureza semelhante a 2009, dado que ninguém discutia a legalidade ou a legitimidade da reeleição do presidente Rouhani, em 2017, o “moderado” de serviço à segunda volta.
Ainda em 2009, vimos que a maioria das manifestações se deram em zonas urbanas, com especial incidência em Teerão, ocupadas sobretudo por uma classe média universitária, desvalorizada e menosprezada constantemente no Ocidente. Em 2018, os protestos tinham uma dispersão territorial muito maior e uma agenda reivindicativa mais difusa. Para tal efeito, não será descabido o facto de em 2009 só existirem um milhão de smartphones no Irão, enquanto em 2018 eram praticamente 50 milhões a propagar mensagens. O “onde está o meu voto?” deu lugar ao “deixem a Síria, pensem em nós” com que se iniciaram as marchas em Mashhad, um clássico bastião xiita. Noutras cidades, como a sagrada Qom, ouviram-se saudosistas do Xá e o depois disseminado “morte aos Guardas da Revolução”, cujo grito chegou ao Curdistão iraniano e ao Khuzistão, a província do Golfo Pérsico responsável por 85% da produção onshore nacional de petróleo e 60% de gás, mas que permanece refém de altos índices de pobreza e desigualdade. Ou seja, se em 2009 havia uma raiva acumulada despoletada por um episódio político, em 2018 a raiva pareceu ter características mais profundas e geograficamente mais alargadas.
Uma delas resultou das expectativas criadas pela eleição de Rouhani, em 2013, apresentado como um reformista e um negociador, o qual teve o grande mérito de conseguir impor internamente junto da cúpula do regime as vantagens de um acordo internacional que permitia monitorizar o programa nuclear em troca do alívio de sanções que estavam a minar totalmente a economia iraniana e a hipotecar o futuro de uma sociedade maioritariamente abaixo dos 40 anos. Ajudado pela administração Obama, pela União Europeia e pelos membros permanentes do Conselho de Segurança, Rouhani foi saudado efusivamente nas ruas do Irão por esse triunfo diplomático, visto por muitos como uma fuga ao estatuto de pária com o qual não queriam ser identificados. Depois da assinatura do acordo, em 2015, a expectativa aumentou brutalmente, mas o tempo e modo não ajudaram: era preciso inverter o desemprego jovem (mantém-se nos 30%), controlar a inflação (está acima dos 40%), abrir um país de 80 milhões de consumidores ao investimento estrangeiro e dar início a um processo de anticorrupção no aparelho de Estado. Rouhani teve sucesso nalgumas frentes e a reeleição parecia validar o seu projecto, mas o caminho acabou por ser muito mais complicado do que parecia.
O segundo elemento de fragilidade resulta, não da denúncia do acordo nuclear por Donald Trump, mas da radial de incursões externas no Médio Oriente alimentadas pelo orçamento de Estado e que têm minado a capacidade financeira do Irão para fazer face a vários colapsos iminentes. Só o custo com a guerra na Síria e o apoio ao Hezbollah custam ao Irão em média 10 mil milhões de dólares por ano, qualquer coisa como o valor do seu défice. O chamado “arco de resistência” sob liderança iraniana (Líbano, Síria, Iraque e Iémen) têm sugado quase todos os recursos a uma economia a tentar aguentar do coma profundo provocado pelas sanções, defraudando as expectativas daqueles que viam em líderes mais reformistas as janelas de oportunidade capazes de inverter o estado calamitoso da trilogia económico-financeira interna: a gestão danosa dos recursos hídricos, uma das causas do aumento brutal de preços nos bens alimentares, a precariedade da banca e a rutura do sistema de pensões.
Voltando atrás, ao contrário das manifestações 2009, as de 2018 trouxeram um acumulado sangrento de guerras civis onde o Irão tentou marcar uma posição de vitória (Iraque, Síria) e de influência nos destinos de um conflito em escalada (Iémen) ou de um país em constante disfuncionalidade (Líbano). No entanto, qualquer império sabe, ou deveria saber pela história, que uma espargata prolongada para maximizar o seu autoproclamado excecionalismo acaba por ter, mais cedo ou mais tarde, um preço altíssimo, para não dizer fatal. É isto que as ruas vão, a espaços, dizendo aos dirigentes iranianos. A resposta, nestes últimos anos, tem acentuado o despotismo interno, a prepotência com desvios, e o alinhamento com potências revisionistas da ordem internacional, como a Rússia e a China, mesmo que por métodos distintos.
Porém, esta teocracia em camadas que define o regime dos aiatolas tem mais brechas do que se pensa. Entre a linha ortodoxa e reformista, entre os civilistas e os teocráticos, entre os universitários urbanos e os grupos implacáveis de segurança, entre o que renegam a condição de pária e os que se vinculam ao projeto nuclear, entre os grupos étnicos e as mulheres e o edifício totalitário do regime. O ano de 2023 foi novamente ilustrativo desta palete heterogénea, expondo uma nova vaga de reivindicação por direitos civis elementares, posta em marcha por curdos, balúchis, sunitas, árabes, fora e dentro das principais cidades, mas sobretudo por mulheres, numa descolagem factual com o edifício instaurado em 1979. Com 60% da população abaixo dos 30 anos, 25% de desemprego jovem e 42% de taxa de inflação, a era do protesto generalizado parece ter margem para galopar e o grito que se ouvia na queda do Xá – “morte ao ditador” – regressou novamente às ruas do Irão, potenciando uma a ânsia renovada por direitos civis que pode promover, em última instância, um divórcio com o regime.
É aqui que estamos. Com um regime com mais contestação interna, com uma transição dinástica em curso na chefia teocrática, embora não consensual, com dilemas crónicos financeiros e económicos que impelem a desvios de atenções, com ambição para materializar uma capacidade nuclear que torne Teerão na potência regional incontestada, com uma narrativa de cerco regional, e com uma margem reavivada de passada incontrolada, fruto de erros estratégicos cometidos, principalmente, por Israel (de Netanyahu) e EUA (de Trump), quando decidiram rasgar o acordo de monitorização nuclear, assinado em 2015. Resultado: desde 2021, o presidente Ebrahim Raisi consolidou a ortodoxia, acelerando o enriquecimento de urânio, juntando ainda o apoio militar à frente russa na Ucrânia, à permanente força a Assad na Síria, ao Hezbollah no Líbano, aos houthis no Iémen e aos xiitas no Iraque.
Se as crises, conflitos e caos no Médio Oriente devem ser vistos nas devidas camadas que a região transporta, não é menos indicado olharmos para a relação próxima que as dinâmicas internas têm nas opções externas dos países. Contestações ao poder político implicam, normalmente, ações robustas além-fronteiras. Narrativas de cerco motivam mais concentração de poder e cristalização de inimigos. Fraquezas de adversários abrem oportunidades de demonstração de força. E catástrofes humanitárias como a de Gaza contribuem para legitimar decisões mais arriscadas, reativando alinhamentos em cadeia em redor de Israel que, capturado pela estratégia do governo de Netanyahu, acaba por fomentar esse tipo de condutas. E assim, sem influências decisivas vindas de fora da região, o Médio Oriente desconstrói-se em múltiplas camadas, num permanente ciclo de incompatibilidades, até à falência total dos seus equilíbrios.
Acontece que o que se passa no Médio Oriente, nunca fica apenas no Médio Oriente.
Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
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