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Leituras N.36

Thomas Piketty, Nature, Culture, and Inequality, London: Scribe, 2024, 82 páginas.

O último livro de Thomas Piketty é baseado numa conferência realizada na Société d'Ethnologie, em França, e discute a evolução da desigualdade de rendimentos e de riqueza ao longo dos séculos. Mas sublinha a contingência histórica e, acima de tudo, o papel da política e da mobilização colectiva.
Embora os dados mostrem uma tendência para uma maior igualdade social desde o final do século XVIII, verificou-se um abrandamento desde o final do século XX. O autor relaciona a redução da desigualdade com a cultura política e, especificamente, com as mobilizações políticas coletivas que pressionam os governos nacionais a instituir uma tributação progressiva, a financiar a educação aberta a todos os grupos sociais e a encorajar a governação participativa e o envolvimento dos trabalhadores nas decisões das empresas. Para tal, Piketty inclui dados sobre as realidades de França, Suécia, outras partes da Europa Ocidental e dos EUA, e comenta brevemente a desigualdade de género, a dívida colonial e de guerra, a ascensão do Estado-providência e as alterações climáticas.
O autor defende que não existe um estado natural de desigualdade. A desigualdade dos recursos naturais também não é determinante para as disparidades. Por exemplo, o facto de existir petróleo na Noruega e na Nigéria, leva a resultados sociais e económicos muito diferentes. Em vez de serem os recursos a determinar a desigualdade, os factos sugerem que são as instituições escolhidas por estas sociedades que determinam os diferentes resultados, sendo elas próprias o produto das respetivas histórias social, cultural e política. Um ensaio desafiante.

Gilles Kepel, Holocaustos, Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente, Lisboa: Dom Quixote, 2024, 205 páginas.

O título deste livro é inquietante. O termo não estará reservado exclusivamente à Shoah, a palavra hebraica para “catástrofe”, que designa o extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. No sentido literal, descreve um sacrifício religioso, explica Gilles Kepel, e por extensão, as suas vítimas e o desejo de aniquilação que motiva o ato. E, desde 7 de outubro de 2023, os sacrifícios mútuos que israelitas e palestinianos infligem mutuamente fazem lembrar um holocausto, pela sua dimensão, pela sua violência e pelo fanatismo religioso que lhes está subjacente.
Perito em geopolítica e especialista no mundo árabe, Gilles Kepel procura esclarecer três dimensões do conflito. Primeiro, o confronto entre dois radicalismos, políticos e religiosos, e os mecanismos de uma espiral de guerra. Segundo, as estratégias dos atores que temem o alastramento do conflito ou, pelo contrário, que exploram a instabilidade regional. Terceiro, a instrumentalização do conceito de genocídio em benefício de uma luta contra o Ocidente e os seus valores.
Num estilo conciso, o livro oferece uma análise do conflito em curso na Faixa de Gaza. Um conflito com décadas malditas, mas que nunca pareceu tão grave como hoje. E, no entanto, apesar do drama atual, poderá qualquer coisa sair daqui. As múltiplas implicações geopolíticas e o papel dos vários Estados envolvidos, de uma forma ou de outra, tornam o resultado imprevisível. Acresce a isto a ascensão de uma ideia de demonização do Ocidente, desqualificado por alguns dos seus próprios jovens nas cidades da Europa e dos EUA, assim como um hemisfério Norte tornado odioso e de critérios humanitários contraditórios, perante uma ideia virtuosa de uma coligação do chamado “Sul global”. Nada no Médio Oriente se reduz à sua geografia.

Bruno Patino, Submersos: Como recuperar a liberdade num mundo demasiado cheio?, Lisboa: Gradiva, 2024, 86 páginas.

Bruno Patino, especialista em média e questões digitais, traça um quadro alarmante da nossa hiperconectada sociedade. Através de reflexões bem documentadas, destaca os efeitos nocivos da tecnologia digital nas nossas vidas, tanto a nível individual como coletivo.
Começa por traçar a história da revolução digital, desde os primórdios na década de 1970 até à sua aceleração exponencial dos anos mais recentes. Mostra como a tecnologia digital invadiu gradualmente a nossa vida quotidiana, tornando-se uma parte indispensável da nossa existência. O autor está particularmente preocupado com a dependência de algoritmos, concebidos para nos manterem em linha e nos oferecerem conteúdos que correspondam aos nossos gostos, privando-nos da liberdade de escolha.
Bruno Patino conclui o seu pequeno ensaio sugerindo formas de repensar a nossa relação com a tecnologia. Apela a um regresso à moderação e à reflexão, para que possamos recuperar a nossa autonomia, e recorda como é essencial limitar a exposição aos ecrãs, especialmente os mais jovens, encorajando momentos de desconexão.
Falando de uma grande mudança antropológica, o também diretor do canal Arte apoia-se em numerosos estudos e relatórios europeus para fundamentar as suas preocupações sobre os efeitos da submersão nos nossos comportamentos, tais como paralisia e fadiga, culpa perante a escolha, delegação, caricatura, redução do ser humano a uma soma de cálculos. De forma mais inovadora, aborda o tema de peso do impacto da chegada da IA generativa no crescimento exponencial dos conteúdos e na ficcionalização do mundo. Um ensaio estimulante e pertinente.

Texto escrito antes de 1 de novembro de 2024.


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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).