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Leituras N.34

Jacob Heilbrunn, America Last: The right’s century-long romance with foreign dictators, New York: Liveright, 2024, 264 páginas.

Para Heilbrunn, jornalista e editor do National Interest, o caso de amor da ultradireita americana com Viktor Orbán (e Vladimir Putin) é apenas a mais recente manifestação de uma linha autoritária de longa data na política americana: um desejo consistente, ainda que periodicamente silenciado, de uma espécie de “paraíso estrangeiro” mais vital, hierárquico e escondido, que sirva de modelo à própria democracia desregrada, decadente e demasiado liberal dos EUA.

Esta tradição, sugere Heilbrunn, remonta pelo menos à Primeira Guerra Mundial, quando escritores como H.L. Mencken e George Sylvester Viereck elogiavam a Prússia do Kaiser Wilhelm II. Entretanto, essa corrente sobreviveu ao período entre guerras, manifestando-se nos louvores do diplomata Richard Washburn Child a Benito Mussolini; na promessa do chefe da Legião Americana, Alvin Owsley, de “proteger as instituições e os ideais do nosso país, tal como os fascistas lidaram com os destruidores que ameaçavam a Itália”; nas relações fascistas dos magnatas Merwin K. Hart, Henry Ford e Thomas Lamont; e nas peregrinações do aviador Charles Lindbergh à Alemanha de Adolf Hitler, onde aceitou a Cruz de Serviço da Águia Alemã das mãos de Hermann Goering em 1938. Vale a pena recordar que o mesmo Lindbergh avisou, em 1939, que a América enfrentava uma “infiltração de sangue inferior” da Ásia, um precursor da frase de campanha de Donald Trump sobre os migrantes que “envenenam o sangue do nosso país”.

Este livro tem o condão de pôr tudo em perspetiva e sublinhar algumas linhas de continuidade que nos escaparam. O resultado está à vista.

Edward Wong, At the Edge of Empire: A Family’s reckoning with China, New York: Viking, 2024, 464 páginas. 
 
Edward Wong, antigo chefe do escritório do New York Times em Pequim, escreveu uma história abrangente da China moderna, juntando-lhe duas narrativas pessoais: a sua e a do seu pai. O livro é simultaneamente ambicioso e invulgar. Wong tem mais história e ligações familiares à China do que anteriores chefes de redação do NYT em Pequim, tendo alguns deles publicado também memórias e experiências desses anos. Ao escrever uma história tão completa da China do século XX, Wong conta ainda uma história que para muitos será pouco conhecida, de lugares e tempos que passam da memória para o passado. 


Filho de imigrantes chineses em Washington, DC, Edward Wong cresceu entre segredos de família. O seu pai trabalhava em restaurantes chineses e raramente falava da sua terra natal ou dos anos que passou no Exército Popular de Libertação sob o comando de Mao. Yook Kearn Wong atingiu a maioridade durante a ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial e a revolução comunista, quando caiu sob o feitiço da promessa de Mao de uma China poderosa. A sua espantosa viagem como soldado levou-o da Manchúria, durante a Guerra da Coreia, a Xinjiang, na fronteira da Ásia Central. Em 1962, desiludido com o Partido Comunista, planeou uma fuga desesperada para Hong Kong. 


Wong é minucioso na sua narração da história chinesa e menciona mais do que uma vez que as questões relativas a Xinjiang e ao Tibete remontam a tempos anteriores à fundação da República Popular da China e ao governo nacionalista da era republicana. Conheceu os cidadãos que estão a impulsionar o espantoso crescimento económico e a expansão global do país, mas também a debaterem-se com o domínio nacionalista de Xi Jinping, o líder mais poderoso desde Mao. Seguindo os passos do seu pai, testemunhou as lutas étnicas em Xinjiang e no Tibete e os protestos pró-democracia em Hong Kong. 
Um livro pessoal, histórico e jornalístico para percebermos a China moderna.  

Anne Applebaum, Autocracy, Inc.: The dictators who want to run the world, New York: Doubleday, 2024, 224 páginas.  


Quase três quartos da população mundial vive hoje em autocracias ou regimes híbridos, estes últimos onde a democracia perdeu saúde (ou nunca chegou sequer a conquistá-la) e os seus mecanismos credibilidade. O novo livro de Anne Applebaum aponta para essa ascensão em rede de partidos, líderes e demais nomenclatura, capazes de transformar regimes por dentro e articulá-los financeira e doutrinariamente numa expressão global. Como escreve a autora, “a globalização das finanças, a infinidade de esconderijos e a tolerância benigna que as democracias demonstraram para com a corrupção estrangeira, dão agora oportunidades aos autocratas, que poucos poderiam ter imaginado há algumas décadas”. 


Se no século XX, a maioria dos autocratas eram ditadores brutais cujo principal objetivo era controlar uma população doméstica, no século XXI a autocracia tornou-se muito mais sofisticada e ambiciosa. Regimes como o russo desenvolveram redes transfronteiriças de estruturas financeiras cleptocráticas, serviços de segurança inovadores e propagandistas profissionais, transmitindo as mesmas mensagens sobre a fraqueza da democracia e o mal do Ocidente. Apoiam-se em aliados nas capitais ocidentais que, misturando ambição e sintonia ideológica, minam por dentro os alicerces das democracias. Isto está a acontecer há duas décadas na Europa e nos EUA, e os resultados estão à vista: polarização estruturada, fragmentação partidária, menos propensão para compromissos, fechamento, ódio discursivo, multilateralismo afetado.  

Texto escrito antes de 1 de novembro de 2024.


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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).