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Leituras N.30

Benoît Christal e Gallagher Fenwick, 7 de Outubro de 2023 Israel e Gaza: O Choque das Tragédias, Lisboa: Casa das Letras, 2024, 182 páginas. 
 
 
Escrever sobre o Médio Oriente desde 7 de outubro de 2023 é mergulhar num abismo ainda mais escuro, avançar para uma imensidão de traumas insanáveis e de notícias sempre trágicas. Para Benoît Christal e Gallagher Fenwick, grandes repórteres e correspondentes de longa data em Jerusalém, este era um imperativo e assim o trabalharam em 7 de Outubro de 2023 Israel e Gaza: O Choque das Tragédias. Não no sentido de escrever mais uma história do conflito, mas de recolher as vozes de ambos os lados: sobreviventes, familiares de reféns, habitantes de Gaza, médicos, jornalistas, fotógrafos, soldados, diplomatas, filhos de deportados, políticos, antigos embaixadores, negociadores. Na maior parte das vezes, trata-se de dois povos que se confrontam tanto quanto se ignoram, separados por um imenso fosso, embora as suas histórias ecoem inevitavelmente uma na outra. É neste desencontro que se desenrolam as tragédias e os sofrimentos.  
Algumas semanas após o ataque do Hamas e de as bombas caírem sobre Gaza, foram recolher as palavras dos civis israelitas que sobreviveram ao ataque, dos familiares dos reféns e dos habitantes palestinianos, vítimas de uma verdadeira hecatombe. Sem estar inteiramente ancorada na atualidade ou numa análise historiográfica dos acontecimentos, a proposta é enxertada num tempo intermédio, o da palavra falada, através da qual os autores humanizam as histórias, traçando os contornos de uma catástrofe multifacetada, feita de muitas feridas. Para além da extensão do fosso que separa israelitas e palestinianos, os capítulos revelam pontos de contacto, uma espécie de ressonância entre dois povos. Sim, há muita dor, sofrimento e raiva, mas há também, paradoxalmente, uma forma de esperança, ainda que ténue, em cada experiência. O objetivo deste livro não é convencer nem acusar, embora sejam evidentes as responsabilidades, mas registar e testemunhar, para evitar que estas tragédias caiam numa espiral noticiosa que parece diluí-las num contínuo de números e episódios, ou que sejam distorcidas e apagadas por aqueles que as querem negar. 

Vicente Valentim, O Fim da Vergonha: Como a direita radical se normalizou, Lisboa: Gradiva, 2024, 160 páginas.

Não é todos os dias que um jovem académico se distingue internacionalmente entre os seus pares. Também não é todos os dias que a formação inicial em piano jazz dá origem a uma vocação complementar em Ciência Política, com doutoramento terminado em Florença e atividade corrente em Oxford. Mas talvez por isso, Vicente Valentim tenha uma apetência intelectual pelo cruzamento de ciências e disciplinas para tentar explicar fenómenos políticos complexos, como é o caso do crescimento rápido da direita radical nos sistemas democráticos europeus. Mas assim é. Sociologia, Economia Comportamental, Antropologia e Psicologia ajudam a problematizar com outro alcance o que a Ciência Política parece ter cristalizado, insatisfação que levou o autor mais longe do que o habitual e com isso vencer vários prémios internacionais com a sua argumentação sustentada e criativa.

A tese principal deste livro, uma adaptação concisa e expurgada do jargão que grassa nas teses de doutoramento, é a de que o crescimento rápido da direita radical se deve a posições já tidas pelos eleitores, mas nunca manifestadas ou executadas através do voto. Ou seja, para além das razões socioeconómicas que levarão muitos ao voto de protesto com os partidos sistémicos tradicionais, ou ainda às reações culturais perante a perceção de mudança sobre os valores dominantes numa sociedade, o autor propõe uma “teoria da normalização” sequencial mediante certas condições que acontecem em três fases.

A etapa da latência, a qual pressupõe a existência de posições radicais não manifestadas pública ou eleitoralmente por falta de corpo que as legitimem, o que leva a uma desvalorização pelos demais atores políticos. A etapa da ativação, quando um ou mais intérpretes dessa radicalização passam a dar voz pública a um conjunto de ideias que mobilizam as pessoas e lhes dão uma nova tração. E a etapa da revelação, quando se atinge um certo corpus social e ideológico sem qualquer pudor de manifestar certas posições radicais, outrora censuráveis, tendo já os seus principais intérpretes papéis nas instituições e no espaço público que ameaçam o sistema político e a moderação democrática.

É, como diz Daniel Ziblatt, “a análise mais cuidadosa da forma como os cidadãos e os políticos repensam o que é aceitável na política”. Um grande livro sobre estes tempos perigosos que vivemos.

Homi Kharas, The Rise of the Global Middle Class: How the search for the good life can change the world, Washington D.C: Brookings Institution Press, 2023, 216 páginas.

O economista britânico Homi Kharas analisa a ascensão da classe média global, que classifica como o desenvolvimento económico mais importante do último meio século: mais de quatro mil milhões de indivíduos que não são nem empobrecidos nem excessivamente ricos e que podem razoavelmente "aspirar a desfrutar de uma vida boa". O estatuto da classe média, segundo muitos cientistas sociais, está associado a um emprego satisfatório, à capacidade de sustentar a família e a comunidade e, de um modo mais geral, à satisfação com a vida. Estudos académicos também associam a classe média à preferência pela democracia em detrimento do autoritarismo.

Até ao início do século XIX, menos de 1% da população mundial podia ser considerada de classe média. Atualmente, mais de metade da população mundial caberá nessa categoria, definida em The Rise of the Global Middle Class como tendo recursos para gastar pelo menos 12 dólares por dia. Na opinião de Kharas, este vasto sector da humanidade - liberto de muitas das pressões da sobrevivência diária - tem um poder sem precedentes para moldar as decisões dos líderes mundiais, tanto na política como nos negócios.

A presença de uma classe média considerável em muitas grandes economias que exigem mais justiça ambiental, laboral e até fiscal - o autor aponta para um acordo entre 130 países em 2022 para implementar um imposto mínimo sobre as empresas multinacionais - pode levar a uma melhor cooperação internacional, pressionada pela reivindicação por práticas empresariais mais éticas e ambientais. Outro desafio que o autor analisa é a oferta de trabalho digno numa era marcada pela aceleração da automatização. Os empregos com salários altos e baixos aumentaram nas últimas décadas, mas os empregos com salários médios diminuíram. A esperança do autor está precisamente numa classe média com consciência global que seja uma força para o bem social e político se os seus membros fizerem pressão para a descarbonização, gastarem o seu dinheiro em produtos mais sustentáveis e apoiarem políticas que promovam a mobilidade social e criem empregos dignos para todos.

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).