Extra Cover

Publicado em Extra Cover

Leituras N.26

Fiona Hill, There is nothing for you here, Nova Iorque: Mariner Books, 2021, 422 páginas.

Escrito por uma das mais brilhantes académicas americanas, especialista na Rússia de Putin, conselheira de Trump para essa precisa temática, é mais do que um livro crítico desse mandato visto por dentro. É a memória de um percurso de vida, através do qual traça um elo relevante entre a desindustrialização e o populismo, entre o abandono territorial e o etnocentrismo, para apontar às causas que elevam figuras como o ex-presidente americano ao poder.

Hill leva, dessa forma, a história de um desencanto industrial e política por três nações que percorrem a sua vida: a decadência da cidade mineira de Bishop Auckland, no norte do Reino Unido, onde nasceu, estudou e a família vivia há várias gerações; os EUA, o país que escolheu para prosseguir os seus estudos avançados em Harvard, e onde tem trabalhado, desde Harvard ao Conselho Nacional de Intelligence, do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca à Brookings; e a Rússia, o objeto da sua vocação de carreira, foco das suas principais preocupações, quer no quadro de insegurança europeia, quer no do fascínio pelo exercício do poder de Putin por parte de sectores relevantes da sociedade americana, inclusive Donald Trump, com quem saiu em rutura.

Um testemunho de uma vida improvável à partida, marcada por uma busca por conhecimento, sentido de serviço público, patriotismo, coragem e dignidade.

Nathan Thrall, Um dia na vida de Abed Salama, Lisboa: Zigurate, 2023, 205 páginas.

É um dos livros do ano. O ensaísta e jornalista americano, há muito a viver em Israel, leva-nos por uma série de enredos e tragédias que nos ajudam a perceber melhor a (con)vivência entre palestinianos e israelitas, sem precisarmos de mergulhar numa literatura académica maçuda, tantas vezes mero espelho narcísico dos autores, mas pouco ou nada pedagógica para a compreensão de um conflito tão complexo numa região tão malfadada. Esta é mesmo a primeira virtude trazida por Nathan Thrall: envolver-nos na anatomia de uma tragédia familiar (a morte de uma criança palestiniana em visita de estudo escolar, numa estrada controlada por Israel), através do peso que a história contemporânea exerce sobre os detalhes quotidianos na Cisjordânia, Gaza e em Israel.

A segunda virtude resulta da própria história, ajudada por uma escrita envolvente, boas escolhas de cortes narrativos, entrelaçamento das personagens, intromissão de processos históricos, muitos infortúnios, alguns de expetativa contrária, numa teia de bloqueios identitários, políticos, sociais, culturais, logísticos e familiares, e que cristalizam o avolumar de abusos sobre o comum cidadão palestiniano e afunilam a crueldade israelita numa generalizada conduta que mal deixa espaço a ruturas ou perceções distintivas. Elas, apesar de tudo, existem, mesmo que a ditadura do radicalismo as abafe e, com isso, prolongue o sofrimento de uns e o isolamento de outros.

John Vaillant, Fire Weather: A true story from a hotter world, Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 2023, 432 páginas.

Ao longo da história da humanidade, o fogo tem sido um parceiro da moldagem civilizacional e cultural. No entanto, na atual era de intensificação das mudanças climáticas, assistimos ao seu poder destrutivo como talvez nunca no passado tenha sido testemunhado. Em 2023, o mês de Julho foi o mais quente alguma vez registado, e incêndios florestais destruíram uma cidade havaiana, levaram a evacuações no Canadá, Grécia e Tailândia.

Através de uma prosa cativante de estilo cinematográfico, o jornalista canadiano John Vaillant aprofunda histórias entrelaçadas da indústria do petróleo, da ciência, do clima, e a devastação sem precedentes causada pelos incêndios florestais modernos. Em particular, o de maio de 2016, em Fort McMurray, Alberta, o centro da indústria de petróleo do Canadá. O desastre transformou bairros inteiros em bombas de fogo e expulsou 90 mil pessoas de suas casas numa única tarde. A intensidade do fogo foi de tal ordem que a energia gerada criou o seu próprio sistema climático, com ventos com a força de um furacão e raios sistemáticos.

Podemos dizer que é um livro sobre a dissonância cognitiva presente no discurso das mudanças climáticas, mas também um espelho da impreparação das autoridades públicas, em particular os serviços de emergência, que ao tranquilizarem permanentemente a cidade e a periferia, incitando à normalidade do quotidiano, provaram o nível de otimismo perante uma ameaça iminente. Está, por isso, quase tudo ainda por fazer: da transição energética à afinação discursiva, passando pela prevenção e pelo ordenamento do território. E sendo geograficamente transversal, só em conjugação alargada de esforços é possível mitigar os seus impactos. Outro falhanço coletivo.

VER MAIS

AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é atualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.