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Leituras N.23

Giuliano da Empoli, Os Engenheiros do Caos, Lisboa: Gradiva, 2023, 200 páginas.

No último capítulo do mais recente livro de Giuliano da Empoli sobre a ascensão do populismo digital, encontramo-nos num centro de resgate para gatos, cuja comunidade de gatos pretos disparou nos últimos tempos. O dono não sabia a razão, até que alguém teve uma explicação: as pessoas não querem gatos pretos porque parecem manchas em selfies, ao contrário dos brancos ou de outros tons claros. Nesta ditadura da imagem e do narcisismo desenfreado, impaciência e crueldade, a sociedade muda valores a um ritmo alucinante, num ato paralelo às alterações na própria democracia representativa, o ponto principal de Engenheiros do Caos.

O ensaísta italo-suíço centra-se precisamente nalguns obscuros fazedores de realidades paralelas, agitadores de narcisismos e novos hábitos de consumo eleitoral, destrutivas dos mecanismos políticos tradicionais, e que agiram na sombra de figuras como Beppe Grillo, Donald Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro ou Viktor Órban, como foram os casos de Gianroberto Casaleggio, editor do blog do fundador do Movimento 5 Estrelas, de Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit, de Steve Bannon, que ajudou Trump a chegar à Casa Branca, ou Arthur Finkelstein, que ajudou o primeiro-ministro húngaro depois de décadas a espalhar os seus métodos subversivos na política americana ou israelita.

O corolário desta rede de experimentalismos carnavalescos tem tido resultados surpreendentes para muitos observadores e efeitos perversos, difíceis de reverter, para milhões de cidadãos. As instituições democráticas abanam com a raiva manipulada nas redes sociais, na voragem dos factos alternativos, na máquina comunicacional subversiva sem qualquer rigor ou ética informativa. E aqui não há clivagens clássicas esquerda-direita que subsistam, o desarranjo é transversal para gerar o medo, o pânico e o caos. Em democracia o mais difícil é sempre cuidar dos métodos, das regras, da cultura política, das instituições. O fácil é atiçar os ódios até destruir os alicerces em que nos relacionamos em comunidade, tendencialmente aberta e dialogante. É neste limbo que muitos países se encontram, de tendência fraturante agravada com o desenvolvimento da inteligência artificial. Este é um livro, por isso, assustadoramente fundamental.

Ben Judah, This is Europe: The way we live now, London: Picador, 2023, 512 páginas.

Ben Judah é um dos melhores jornalistas-analistas da nova geração europeia. Fragile Empire (2014) e This is London (2016) são exemplos de uma certa forma de olhar o mundo através das histórias individuais das pessoas comuns, por sua vez inseridas numa determinada comunidade política capaz de ser escamada nas suas virtudes, defeitos e complexidades. Se no primeiro Judah percorre a Rússia para nos revelar todos os seus enigmas, charadas e mistérios, para usar a fórmula de Churchill, no segundo mergulha na multiculturalidade da capital britânica para nos mostrar o que está para lá da sofisticação e riqueza das suas mais conhecidas facetas.

Acabado de publicar, This is Europe é tão ambicioso como os dois livros anteriores, mas a escrita está ainda mais apurada, o olhar político mais amadurecido, o cruzamento de ângulos mais aprimorado. O autor percorre a Europa em vinte e três capítulos, correspondendo a outras tantas cidades, reportando histórias de europeus vindos da imigração, fugindo de guerras, mais das margens da sociedade do que do seu centro privilegiado, um retrato fiel da pluralidade étnica, religiosa e histórica que define um continente tantas vezes amarrados a mitos de homogeneidade cultural que procuram excluir em vez de incluir, dividir em vez de arrumar. O exercício que Judah aqui faz acaba por trazer a reportagem para a análise política, a sociologia para a linguagem jornalística, o humanismo para uma literatura que se afasta das abstrações e se concentra nas pessoas. E se a Europa não for para elas, qualquer narrativa grandiloquente servirá de muito pouco.

Pranab Bardhan, A World of Insecurity: Democratic Disenchantment in Rich and Poor Countries, Cambridge: Harvard University Press, 2022, 208 páginas.

O recuo da democracia liberal no século XXI tem sido impossível de ignorar. De Wisconsin a Varsóvia, de Budapeste a Bangalore, há uma tendência de revolta contra o pluralismo e as instituições liberais, abrindo caminho a uma nova vaga de nacionalismo com doses cavalares de recalcamento. Os críticos da desigualdade argumentam que esta é uma resposta previsível aos fracassos do capitalismo e da globalização, mas Pranab Bardhan, professor de Economia em Berkeley, vê as coisas de forma diferente: o problema não estará tanto na desigualdade, mas na insegurança financeira e cultural.

Bardhan observa que os movimentos antidemocráticos foram ganhando corpo numa ampla gama de grupos demográficos e socioeconómicos. Nos Estados Unidos, entre as populações rurais mais velhas e menos educadas. Na Índia, entre um nacionalismo hindu predominante em jovens urbanos educados e ambiciosos. Na Europa, em redor de um populismo histriónico anti-imigração que procura expurgá-la do estado social. O autor conclui que é o medo de perder o que julga ser sua pertença exclusiva que está na génese da falange anti-democrática, seja ele dinheiro, orgulho nacional, ou o conforto das tradições.

O autor acaba por propor algumas respostas a este contexto de aspereza e trincheira. Para alguns casos, sistemas de rendimento básico universal, mais adequados para países pobres. Para outros, mais poder de decisão e responsabilidade aos trabalhadores, com níveis de coordenação internacional que acomodem as regras. Por fim, Bardhan reconhece que melhorar apenas a segurança material não será suficiente para sustentar a democracia, que precisa sempre de uma mobilização pela cidadania local e comunitária para ser capaz de moderar as ansiedades culturais e os choques sociais gerados pela multiculturalidade, antes que tudo se torne irremediavelmente patológico e irreversível.

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima (Lisboa, 1979) é atualmente Conselheiro Político do Presidente da República Portuguesa. Além disso, é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, analista de política internacional do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de oito livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente Portugal na Era dos Homens Fortes: Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid (Tinta-da-China), publicado em Setembro de 2020.