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Leituras N.22

Elizabeth Buchanan, Red Arctic: Russian Strategy Under Putin, Washington DC: Brookings Institution Press, 2023, 224 páginas.  
 
Pende sobre o Ártico um termómetro permanente sobre a evolução das alterações climáticas, rotas comerciais, direitos e tradições dos povos indígenas, e ainda sobre a resiliência do direito internacional. Neste quadro, Elizabeth Buchanan analisa a estratégia da Rússia, em particular os anos de Putin, país que tem 53% do território do Círculo Polar Ártico, procurando desmontar algumas perceções sobre o comportamento do Kremlin. A tendência será concentrarmo-nos nos aspetos militares do Ártico e na sua securitização - apesar do fórum multilateral criado em 1996, o Conselho do Ártico -, ângulo que resulta da longa bipolarização dos anos da Guerra Fria e dos comportamentos agressivos da Rússia, que acabam por alimentar novas geografias de receios para Washington e aliados da NATO. Contudo, Buchanan, investigadora na Academia Naval da Austrália, considera esse choque exagerado dado o enorme desafio que seria protagonizar um conflito numa área polar.  
Buchanan explica que a estratégia de Putin para o Ártico tem sido uma prioridade nacional, quer em meios navais, militares e de expedição energética. Para tal, Moscovo tem privilegiado a cooperação com empresas energéticas estrangeiras e precisado de injeções de capital, apoiando-se num ambiente de baixa tensão para defender os seus interesses económicos. Bem argumentado, sólido e sereno nas questões que levanta, Red Arctic acaba também por ser um olhar sobre os interesses concorrentes e sobrepostos entre os Cinco do Ártico – Canadá, Dinamarca, Noruega, Rússia e Estados Unidos -, abrindo a dúvida sobre a evolução da estratégia russa após a decisão de invadir a Ucrânia, num fosso de desconfiança total com o Ocidente que a pode levar a apoiar-se em membros observadores do Ártico como a China e a Índia, alterando a temperatura geopolítica da região polar. Não há muita literatura sobre isto, o que releva a importância deste livro.  

Jan-Werner Muller, Democracy Rules, London: Penguin Books, 2022, 256 páginas. 
 
Jan-Werner Müller é professor em Princeton e tem dedicado a sua investigação às crises da democracia representativa e à emergência do populismo – What is Populism? é um dos melhores trabalhos sobre o tema. Neste último livro, Democracy Rules, Müller recentra os fundamentos da democracia – liberdade, igualdade e incerteza – para responder à questão sobre se a democracia está ou não em perigo. Ao contrário de outros, o autor fornece uma perspetiva mais tranquilizadora ao enfatizar a relação entre o conflito e a contingência como parte do dinamismo da própria democracia. 
Baseando-se em ideias de John Stuart Mill, Jean-Jacques Rousseau e John Rawls, Müller recorda-nos que a democracia não reflete identidades, opiniões ou preferências estanques ou fixas, ou que os partidos não estão permanentemente ligados às suas posições políticas. É da natureza do processo que as disfunções aconteçam. É precisamente por isso que as instituições democráticas acomodam os conflitos, fomentando o debate e o desacordo, preservando a liberdade e a igualdade, num quadro de regras aceites e levadas a cabo em sociedade.  
Contudo, Müller reconhece os limites da falta de sintonia crescente entre cidadãos e aquilo que chama de “infraestrutura crítica da democracia”, o que implica a melhorias dos intermediários, sob a forma de partidos políticos e de jornalismo. São eles que transformam queixas em exigências concretas, que promovem o associativismo e a participação em sociedades fragmentadas, que traduzem o conflito em diálogo, que informam com rigor profissional e escoam o ruído pelas opções editoriais que tomam. 
Este livro é um diagnóstico à emergência autoritária, aos dilemas atuais das democracias, à perversidade da hegemonia tecnológica nos nossos hábitos, à hipocrisia das cleptocracias. Mas é também um assomo de crença na criatividade democrática, na força da liberdade e na renovação do contrato social. 

Henry Kissinger, Liderança, Lisboa: Dom Quixote, 2023, 560 páginas. 
 
Com cem anos feitos há pouco tempo, Kissinger continua numa prolífica produção literária. Nos últimos anos tem-se dedicado aos mistérios da Inteligência Artificial e seus impactos na geopolítica, mas é de Liderança que este último livro nos fala. Dos seus atributos, modelos e tipologias, dos mais carismáticos aos mais utópicos, dos mais pragmáticos aos mais ideológicos. No essencial, o autor aponta para uma lógica valorativa do político para além da força que as circunstâncias impõem às decisões. Para Kissinger, há características muito particulares nos grandes líderes que moldam a história, sem as quais o rumo dos acontecimentos não seria traçado. Além desse elemento humano, atribui também importância aos relacionamentos dentro dos núcleos próximos do decisor, à forma como interagem os líderes internacionais e de como esse respeito (ou química) pode determinar o curso de uma decisão, a antecipação de um dilema, a construção de uma era. Neste sentido, Liderança pode ser visto como complementar a um outro livro recente, Personalidade e Poder, de Ian Kershaw.  
Para tal, elabora um retrato de seis personalidades mundiais da segunda metade do século XX, fundamentais em fases de transição ou rutura, umas com quem privou, outras com quem se cruzou, outras ainda que aconselhou, introduzindo na análise histórica dos factos e decisões, elementos da vida privada, reflexos da infância, ou traços de personalidade que se provaram fundamentais no juízo sobre alguns momentos políticos-chave, pincelando com histórias que envolvem o próprio Kissinger e que ajudam a compor o enredo. De Konrad Adenauer, realça a estratégia da “humildade” para a Alemanha do pós-Guerra. De Charles de Gaulle, a estratégia da “vontade” no mesmo período. De Richard Nixon a do “equilíbrio” de poder na fase da détente na Guerra Fria. De Anwar Sadat, a da “transcendência” no papel do Egito rumo à paz no Médio Oriente. De Lee Kuan Yew, a da “excelência” na linha de desenvolvimento de Singapura. De Margaret Thatcher, a da “convicção” contra as impossibilidades políticas.  
Apesar de histórico, acaba por ser um livro que também reflete sobre os condimentos da liderança do futuro: analítico, equilibrado, corajoso, empático e com visão estratégica.  

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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).