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Efeitos geopolíticos do inverno demográfico

Há diversos fatores demográficos, incluindo o género, a etnia e a origem, que geram impactos vários na globalização, alterando, por exemplo, a composição da força de trabalho ou conduzindo à polarização identitária e ideológica. Mas há dois elementos que se destacam enquanto forças suficientemente decisivas na aceleração de dinâmicas globais: a idade e o crescimento demográfico.

Sabemos, por indicadores monitorizados há vários anos, que muitas das sociedades estão a envelhecer rapidamente e as suas forças de trabalho estão a diminuir em termos de percentagem da população total. O crescente rácio de dependência da população mais idosa exerce uma pressão cada vez maior sobre os sistemas de segurança social, aumentando por sua vez a tensão sobre as políticas públicas adotadas e mesmo sobre os sistemas políticos. A segregação etária - por exemplo, impulsionada pelo facto de os trabalhadores mais jovens se deslocarem para as cidades em busca de oportunidades de emprego e deixarem as zonas rurais desertificadas - aumenta a disparidade das visões do mundo e das convicções políticas entre os diferentes grupos etários. Por outras palavras, cria-se um fosso intergeracional e quebra-se a coesão social.  

No entanto, com a população mais velha a ultrapassar progressivamente a mais nova em muitas das sociedades mais desenvolvidas, podem ser vários os efeitos políticos dessa tendência. Por exemplo, a inclinação do voto a favor de propostas mais conservadoras, menos abertos à multiculturalidade, menos alinhadas com reformas sistémicas, e ainda mudança nos padrões de consumo de bens e serviços, como a saúde, desafiando as empresas e os governos a trabalharem de forma diferente para garantir que não existem exclusões sociais ou agravamento das desigualdades.  

Já outras sociedades com uma demografia mais jovem e em expansão dessa faixa etária, tenderão a reforçar uma nova força de trabalho e mercados de consumo mais amplos. Essas populações em crescimento terão de ser alimentadas, alojadas, educadas e empregadas para que o potencial produtivo se concretize e a paz social se mantenha. Os países com uma idade média baixa debatem-se cada vez mais com o desemprego e o subemprego elevados dos jovens, independentemente do nível de educação atingido, o que provoca um desalinhamento brutal de expetativas e até uma agitação social mais amplificada.  

Em 2030, uma em cada seis pessoas no mundo terá 60 anos de idade ou mais. Nessa altura, a percentagem da população nessa faixa etária aumentará de mil milhões, em 2020, para 1,4 mil milhões. Em 2050, a mesma população mundial duplicará (2,1 mil milhões), equivalendo ao dobro das crianças com menos de 5 anos e quase ao equivalente do número de crianças com menos de 12 anos. As previsões das agências da ONU apontam ainda para que o número de pessoas com 80 anos ou mais triplique entre 2020 e 2050, atingindo 426 milhões. Embora esta mudança na distribuição da população tenha começado nos países de rendimento elevado (no Japão, 30% da população já tem mais de 60 anos), são agora os países de rendimento baixo e médio que estão a sofrer as maiores alterações. Em 2050, dois terços da população mundial com mais de 60 anos viverão em países de baixo e médio rendimento. 


Também a migração internacional está a desempenhar um papel importante na definição das tendências demográficas. Nos países de rendimento mais alto, a contribuição da migração internacional para o crescimento da população entre 2000 e 2020 foi superior ao saldo entre nascimentos e mortes. Assim, prevê-se que a migração seja o principal fator de crescimento da população nos países de rendimento elevado num futuro próximo. No entanto, nos países de baixo rendimento e de rendimento médio-baixo, prevê-se que o crescimento da população continue a ser impulsionado por um excesso de nascimentos em relação aos óbitos.  


Por exemplo, entre 2010 e 2021, 40 países registaram um fluxo líquido de mais de 200 mil migrantes cada, tendo 17 deles registado mais de um milhão de pessoas. Alguns dos países com elevados níveis de imigração durante este período foram a Jordânia, o Líbano e a Turquia, principalmente devido aos movimentos de refugiados, em particular da Síria. Por outro lado, em dez daqueles países, a estimativa de saída líquida de migrantes ultrapassou um milhão durante o mesmo período, o que se deveu a movimentos de mão de obra temporária em alguns países, enquanto noutros tal se deveu à insegurança crónica e aos conflitos. 


No meio dessas dinâmicas, a pandemia de COVID-19 teve efeitos alargados na evolução da população, incluindo na fertilidade, na mortalidade e nas migrações. Em 2021, a esperança de vida à nascença a nível mundial diminuiu de 72,8 anos em 2019 para 71 anos, principalmente devido ao impacto da pandemia. Na Ásia Central e Meridional, mas também na América Latina e nas Caraíbas, a esperança de vida à nascença diminuiu quase três anos entre 2019 e 2021. Para a Bolívia, o Botswana, o Líbano, o México, Omã e a Federação Russa, as estimativas da esperança de vida à nascença diminuíram mais de quatro anos entre 2019 e 2021.  


De forma generalizada, o risco de pobreza aumenta com a idade, apesar da rede de segurança frequentemente proporcionada pela família. Tendo em conta o crescimento da população idosa a nível mundial, a questão da pobreza na velhice tornar-se-á cada vez mais importante, em especial nos países de baixo e médio rendimento que não dispõem de sistemas públicos de pensões. As mulheres idosas correm um maior risco de pobreza do que os homens, dado que o acesso desigual à segurança social na velhice está ligado às desigualdades de género, como a menor participação das mulheres na força de trabalho, por exemplo. 


Já nos países europeus, embora os idosos tenham enfrentado durante muito tempo um elevado risco de pobreza ou exclusão social, esta tendência inverteu-se. Entre meados da década de 1990 e o final da década de 2000, o seu rendimento cresceu mais rapidamente do que o do resto da população. Em 2019, apenas 18,6% da população com mais de 65 anos estava em risco de pobreza ou exclusão social, o que a torna no grupo etário menos afetado. Para as pessoas com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos, a taxa era muito mais elevada, com 27,8%. Na União Europeia, o impacto orçamental do envelhecimento da população é já um enorme desafio, de acordo com as projeções da Comissão Europeia. Estima-se que o custo global do envelhecimento, nomeadamente as despesas públicas com a saúde, os cuidados prolongados, as pensões, a educação e os subsídios de desemprego atinjam 26,7% do PIB. A equidade entre gerações pode tornar-se uma preocupação crescente, porque as desigualdades entre a geração mais velha e a mais nova estão a aumentar devido ao facto de o rendimento das pensões ser mais estável e menos afetado por períodos de crise económica do que os rendimentos do mercado. 

Outro efeito do envelhecimento populacional pode ser o aumento do peso eleitoral dos cidadãos idosos. Juntamente com uma maior participação nas eleições, que é particularmente evidente nas zonas urbanas, este facto pode tornar as decisões políticas mais alinhadas com as suas preferências fiscais, ou seja, para despesas com pensões e serviços públicos prestados, em detrimento das despesas com a educação, a habitação social ou as infraestruturas públicas. Esta situação pode potencialmente conduzir a uma sub-representação política dos eleitores mais jovens que serão afetados pelos resultados do processo democrático durante muito mais tempo.  
 
Mudemos agora de geografia. De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, em 2050, uma em cada quatro pessoas na Ásia terá mais de 60 anos. Este número triplica em relação a 2010. Prevê-se que a China, a grande potência económica da região, registe uma diminuição de 220 milhões de pessoas em idade ativa e que a população do Japão diminua 16%, prevendo-se que o número de idosos a viver sozinhos aumente 47%. Esta mudança demográfica tem implicações de grande alcance que exigem a atenção imediata dos decisores políticos, das empresas e dos cidadãos. À medida que as populações envelhecem, os países enfrentarão desafios como o aumento dos custos dos cuidados de saúde, a redução da mão de obra e a potencial estagnação económica. Estes desafios internos, por sua vez, poderão ter impacto nas prioridades da política externa, nas capacidades militares e na dinâmica do poder regional. 


A China, cujas projeções apontam para que ultrapasse os Estados Unidos como a maior economia do mundo, poderá enfrentar obstáculos à sua ascensão devido à diminuição da mão de obra e ao aumento dos custos da segurança social. O abrandamento económico na China poderá ter efeitos globais. Os países que beneficiaram da sua ascensão económica, como os exportadores de bens do Sudeste Asiático e da União Europeia, poderão ter de reavaliar as suas estratégias de crescimento. Além disso, uma China com restrições financeiras poderá ter dificuldade em financiar a sua ambiciosa Iniciativa Faixa e Rota ou em modernizar as suas forças armadas ao ritmo atual. Esta situação poderá alterar potencialmente a dinâmica de segurança na região da Ásia-Pacífico. 

Mas os desafios demográficos que a Ásia está a enfrentar não são, contudo, uniformes. Enquanto a Ásia Oriental está a envelhecer rapidamente, algumas partes do Sul e do Sudeste Asiático ainda têm populações relativamente jovens. A Índia, o país mais populoso do mundo, tem uma idade média de apenas 28 anos. A população jovem da Índia poderia potencialmente posicioná-la como um contrapeso à influência da China na região, uma vez que pode utilizar eficazmente a sua força de trabalho. As diferenças demográficas na Ásia poderão, ainda, conduzir a um aumento dos fluxos migratórios, uma vez que os países com populações envelhecidas procurarão resolver a escassez de mão de obra por essa via. É, aliás, o caso do Japão, que já começou a flexibilizar as suas políticas de imigração, tradicionalmente rigorosas, a fim de atrair trabalhadores estrangeiros. Estes padrões de migração, impulsionados pela demografia, poderão remodelar as paisagens culturais e recriar fontes de tensão regionais. 


As alterações climáticas acrescentam, por si só, outro nível de complexidade a esta mudança demográfica. Com os fenómenos meteorológicos extremos a tornarem-se mais frequentes, as populações mais idosas tendem a ser especialmente vulneráveis, o que pode conduzir a novos padrões de migração dentro e fora da Ásia. 


Assim, as escolhas políticas feitas atualmente desempenharão um papel crucial na forma como os países se adaptam às mudanças demográficas, ambientais e económicas. Os investimentos na educação, nos cuidados de saúde e na inovação tecnológica podem ajudar a atenuar alguns dos desafios colocados pelo envelhecimento da população, que carece ainda de uma promoção das adaptações sociais e culturais de forma a apoiar os trabalhadores mais velhos e a incentivar a solidariedade entre as gerações. É a paz social que pode estar em causa.  

Texto escrito antes de 1 de novembro de 2024.


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AUTORES

Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).