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DISCRIMINAÇAO E SEGURO: UM EQUILÍBRIO SEMPRE INSTÁVEL
O seguro é essencialmente um instrumento que discrimina. Discrimina entre os riscos que segura e os que não segura, entre os tipos de prejuízo que cobre e os que não quer cobrir, entre as atividades e as empresas a que permite uma confortável transferência de risco e aquelas às quais o torna muito mais difícil ou mesmo impossível. Finalmente, não nos equivoquemos, também discrimina entre indivíduos. Fá-lo entre os seres humanos com quem decide negociar uma apólice e os outros que decide deixar à concorrência (ou até ao Estado, ou outro terceiro); fá-lo ainda quando decide que a alguns pedirá um prémio baixo e acessível e a outros um montante avultado ou mesmo incomportável.
Discriminar, no entanto, não é essencialmente nocivo nem de rejeitar. No fundo, discriminar significa dar preferência a algumas pessoas sobre outras e isto é inerente ao funcionamento das relações privadas (económicas e não só) no quadro de um sistema de economia de mercado. Sempre que escolhemos um sócio, um colaborador, um fornecedor, um funcionário ou um cliente desejoso dos nossos serviços, fazemo-lo pondo-o à frente de todos os outros. Esta escolha, salvo casos muito singulares, não é feita ao acaso mas parte de algum motivo: seja a condição económica dos diversos candidatos, as suas competências profissionais, a sua força física, a sua aparente estabilidade emocional, a sua simpatia ou boa figura, sejam outras possibilidades.
O problema, claro está, é confrontar esta liberdade elementar de escolha com a existência do direito fundamental a não ser discriminado, também ele indiscutível num Estado democrático. Por outras palavras, onde reside o limite da liberdade da seguradora em escolher com quem contrata ou propor o prémio que lhe pareça conveniente?
Não é fácil dar uma regra heurística para determinar quando é lícita a discriminação e quando esta constitui uma violação do direito à igualdade. Se se pretende ter uma ideia das tendências correntes, pelo menos no direito europeu, o certo é que a melhor forma de distinguir entre o exercício legítimo da liberdade individual e a violação do direito a não ser discriminado consiste em observar sempre a causa ou motivo da discriminação. Há um conjunto de causas de discriminação relativamente às quais a proteção garantida pelos ordenamentos jurídicos é muito mais robusta. Trata-se das causas relacionados com traços daquilo a que poderíamos chamar a identidade da pessoa: a sua raça, sexo, origem étnica, pertença a uma minoria, género, características genéticas, orientação sexual, ideologia, ou religião. Quando se preferiu ou preteriu alguém com base numa destas causas torna-se extremamente complicado justificá-lo alegando que há direito de livre escolha. Poderia dizer-se que qualquer diferença entre seres humanos que se faça com base numa destas causas, em princípio, deve considerar-se ilícita. Realmente, quando a causa da discriminação não tem a ver com a “identidade” do indivíduo mas sim com a sua posição económica, estado físico e de saúde, educação, ou, no caso dos seguros, com o risco que este gera, será muito mais fácil encontrar motivos válidos para discriminar entre pessoas que apresentam diferentes níveis em qualquer destes âmbitos.
Voltando agora ao mercado de seguros, nos últimos tempos não é raro ouvir em Espanha notícias sobre sentenças que resolvem casos de discriminação protagonizados por seguradoras. Muitos destes casos têm a ver com o estado de capacidade jurídica plena que se reconheceu a todas as pessoas afetadas por invalidez em Espanha depois da reforma do Código Civil realizada pela pela Lei 8/2021. Nestes casos de discriminação protagonizados por seguradoras, o padrão é o seguinte: uma seguradora negou a contratação de uma apólice a uma pessoa com deficiência, ou então pediu-lhe um prémio muito acima do normal. Seguidamente, a pessoa com deficiência ou incapacidade reclamou contra a empresa por violar o seu direito à não-discriminação. A pergunta que se nos coloca a seguir é evidente. Sempre que se nega o seguro a uma pessoa com incapacidade ou deficiência, estamos perante um caso de discriminação ilícita?
Aplicando o que se disse acima, a resposta não pode ser um sim automático. Para chegar a alguma conclusão será necessário avaliar os factos concretos de cada caso, tratando de determinar qual terá sido o motivo ou causa da recusa de cobertura. Se as circunstâncias envolventes indicarem que o motivo da decisão é realmente a presença da deficiência ou incapacidade (por exemplo, a empresa teria uma política de recusa sistemática de clientes com incapacidades por considerar que complicam a sua gestão), então haverá que reconhecer que a recusa é discriminatória. A seguradora valer-se-ia de um traço da identidade da pessoa (a pertença ao coletivo de pessoas com deficiência ou incapacidade) para recusar, ou tornar impossível, a contratação de apólice.
Pelo contrário, poderia defender-se que não há discriminação proibida se a empresa tiver recusado a contratação, ou exigido um prémio mais elevado ao incapacitado, porque avaliou objetivamente o risco que geram as suas circunstâncias pessoais concretas, e esse risco demonstrou ser suficientemente elevado para justificar a decisão tomada. Neste caso, poderia argumentar-se que a seguradora apenas velou objetivamente pela boa administração da sua empresa e, consequentemente, pelos interesses de todos os seus clientes.
Não se pretende ocultar ao leitor as dificuldades inerentes ao processo de decisão entre saber se estamos perante um caso de discriminação por incapacidade ou não. Entre outras coisas, porque a estratégia a seguir por qualquer advogado que quisesse defender a seguradora com êxito seria tentar apresentar a discriminação como resultado de uma avaliação objetiva e clínica do risco. De facto, a maioria das questões sobre as quais um juiz deve deliberar implicam o confronto com níveis de dificuldade e estratégias parecidas por parte dos juristas. Seja como for, do que não pode restar dúvidas, em minha opinião, é que todo o ónus de demonstrar que a recusa ou aumento do prémio foram perfeitas e objetivamente justificados do ponto de vista da ciência atuarial deve recair sobre a seguradora. À falta de prova científica, objetiva, convincente e suficiente de que assim se tenha feito, o correto será deliberar que estamos perante um caso de discriminação ilícita por motivo de incapacidade ou deficiência.