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China, Rússia e o Ártico

As mudanças que estão a ocorrer no Ártico exercem uma enorme pressão sobre a região e sobre a capacidade dos Estados, comunidades e povos autóctones para enfrentarem os desafios de segurança contemporâneos, dos ambientais aos culturais, passando pelos económicos, alimentares e relacionados com a saúde pública.

As alterações climáticas são um dos fatores que mais afetam o ambiente físico e os meios de subsistência das pessoas que vivem na região, bem como a sua geopolítica. As temperaturas globais estão a aumentar e o Ártico está a aquecer mais rapidamente do que qualquer outra região do mundo. Por exemplo, os meses da primavera e do verão de 2019 foram classificados entre os três mais quentes desde 1979, e as temperaturas médias de junho a agosto foram 3-4 graus Celsius acima da média. Entre 1979 e 2019, a taxa linear de declínio do gelo marinho foi de 82 400 quilómetros quadrados por ano, ou 12,9% por década em relação à média de 1981 a 2010. Os cientistas não excluem a possibilidade de, no futuro, o Ártico ficar sem gelo no verão. O aquecimento atmosférico resulta no declínio da cobertura de neve terrestre na primavera e na redução da extensão e duração da cobertura de neve no outono.

O degelo do Ártico suscitou debates sobre a abertura de novas oportunidades económicas, principalmente relacionadas com a extração de recursos naturais e a navegação. Esta situação, por sua vez, levantou uma série de desafios em matéria de segurança, por exemplo, no que respeita às medidas de segurança ambiental marinha, à falta de infraestruturas adequadas ao longo das rotas marítimas e a ausência de capacidades generalizadas de busca e salvamento. Por sua vez, a exploração de petróleo e gás aumenta o risco de poluição provocada por derrames, com potencial para afetar os ecossistemas, a vida selvagem e os meios de subsistência das comunidades locais. A exploração mineira e os grandes projectos de infraestruturas são também vistos como um risco para os meios de subsistência, ao mesmo tempo que as indústrias extrativas são uma base da segurança económica e de emprego no Ártico.

Um dos grandes atores a compreender as mudanças profundas no Ártico tem sido a Rússia, que vem aumentando as suas capacidades militares na última década. Desde 2011, reabriu várias das suas bases militares e restaurou aeródromos e estações de radar. Iniciou também uma modernização das suas forças nucleares baseadas no mar e dos grandes navios de superfície baseados na Frota do Norte, na península de Kola. Em dezembro de 2014, a Rússia estabeleceu o Comando Estratégico Conjunto da Frota do Norte para consolidar os ramos militares sob um único comando, reavivando ainda a defesa dos submarinos de mísseis balísticos de propulsão nuclear e a garantia do seu acesso ao Atlântico Norte.

Estes elementos constituem fatores de tensão geopolítica crescente na região e justifica uma análise mais atenta por parte dos países europeus do Ártico e da própria NATO. Poucos estudos de caso encarnam melhor esta evolução do que Svalbard, um arquipélago norueguês com uma área de cerca de duas vezes o tamanho da Bélgica e localizado a 650 quilómetros a norte do território norueguês e a apenas 1000 quilómetros do Pólo Norte. Uma análise das ligações entre a geografia e a política de poder em torno de Svalbard - o território mais setentrional da Noruega, com um estatuto político e económico único - revela a complexidade da competição geopolítica polar e a forma como as simples representações de cenários de conflito podem ser inúteis. 


A posição regional única de Svalbard é especialmente pertinente. O arquipélago tem uma importância estratégica, uma vez que a sua localização pode ser crucial para o controlo do acesso de e para a Frota do Norte da Rússia na Península de Kola. As águas em torno de Svalbard também contêm abundantes reservas de peixe e extensos depósitos minerais. O degelo melhorará gradualmente o acesso a alguns destes recursos e poderá facilitar o aumento da atividade marítima nesta parte do Ártico. Estas ilhas são alvo de acordo de fronteiras entre a Noruega e a Rússia, mas o precedente na Ucrânia, a rutura das relações com Moscovo e uma comunidade russa à volta das minas de carvão têm alarmado Oslo.  


Os interesses da China na região também suscitam preocupações entre os Estados do Ártico. Xi Jinping anunciou a ambição chinesa em tornar-se uma "grande potência polar" para facilitar o seu objetivo de se tornar uma "grande potência marítima", dois anos após ter chegado à presidência. Em 2021, o XIV Plano Quinquenal do Partido Comunista Chinês voltou a enfatizar o envolvimento no Ártico através do que chamou de "Rota da Seda Polar". Os interesses da China no Ártico incluem a exploração científica, a governação e a diversificação económica, abrangem a livre navegação nas rotas marítimas - através da zona económica exclusiva da Rússia e, uma vez livre de gelo, da Rota do Mar Transpolar, por águas internacionais -, e a extração de recursos como petróleo, gás, minerais e peixe, além do turismo. Estas prioridades abrangentes, juntamente com a ênfase nas tecnologias de dupla utilização civil-militar, também proporcionam a Pequim uma oportunidade para promover a sua presença, recolher informações sobre a tecnologia e os sistemas militares de outras potências do Ártico e adquirir conhecimentos técnicos e operacionais.  


Entretanto, como sabemos, a parceria entre a Rússia e a China no Ártico, tal como a relação estratégica mais vasta entre Moscovo e Pequim, evoluiu significativamente ao longo da última década e atingiu níveis sem precedentes desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. O crescente alinhamento entre os dois países e as atividades militares conjuntas no Ártico, têm sido discutidas como um indicador de que a anterior desconfiança da Rússia em relação às ambições globais da China, a sua ênfase histórica no exercício de um controlo soberano sobre os territórios árticos e os seus esforços para limitar o acesso de Estados terceiros à região, podem estar a dissipar-se à medida que Moscovo procura compensar as suas vulnerabilidades que também resultaram da invasão em grande escala da Ucrânia.  


Vários desenvolvimentos de grande visibilidade - incluindo uma patrulha naval conjunta perto das Ilhas Aleutas, em agosto de 2023 e a assinatura de um memorando de entendimento Rússia-China sobre a aplicação da lei marítima ao longo da Rota do Mar do Norte, em abril de 2023 - podem ser vistos como potenciais pontos de viragem na relação bilateral no Ártico. Em abril de 2024, as marinhas russa e chinesa assinaram um memorando de entendimento adicional sobre a cooperação em matéria de busca e salvamento naval "em alto mar". Entretanto, a Rússia convidou o grupo dos BRICS a testarem o seu equipamento durante os exercícios no Ártico, em 2025. Estas ações demonstram os esforços crescentes de Moscovo para colaborar com atores não ocidentais no meio da concorrência geopolítica polar.   


Embora estes anúncios sejam importantes, a sua implementação será provavelmente desigual. As atividades incrementais menos publicitadas que ocorrem sob a cobertura de esforços civis, embora mais difíceis de acompanhar, podem ser de maior importância. Particularmente preocupantes são os esforços conjuntos que apoiam o desenvolvimento da indústria de defesa, o desenvolvimento de infraestruturas de dupla utilização com potencial para apoiar operações militares e os trânsitos de navios comerciais, os quais podem ser explorados para obter dados alheios e ameaçar aliados da NATO. A governação autocrática de Moscovo e Pequim e o enfoque nas atividades híbridas, aceleradas pela guerra na Ucrânia, tornam a delimitação clara entre atividades civis e militares um grande desafio. Isto é especialmente claro no caso da RPC, cuja estratégia explícita de desenvolvimento da fusão civil-militar pressupõe que todas as atividades civis podem apoiar as ambições militares e o desenvolvimento da indústria de defesa.  

 
A Rota do Mar do Norte é a principal artéria da colaboração comercial entre a Rússia e a China no Ártico. O comércio ao longo desta rota desempenha um papel fundamental no apoio à economia russa e oferece oportunidades económicas e estratégicas a Pequim. Os dois países têm economias assimétricas, mas complementares, com a Rússia a exportar principalmente matérias-primas, minerais essenciais e energia - produtos muito procurados por Pequim - e a importar alta tecnologia e componentes eletrónicos da China, incluindo os utilizados para apoiar o seu esforço de guerra na Ucrânia. 

A Rússia detém as maiores reservas de gás do mundo (maioritariamente concentradas na península de Yamal) e está entre os três maiores produtores mundiais de petróleo bruto. Como as sanções contra a Rússia interromperam os fluxos de gás através do gasoduto de Yamal para a Europa, Moscovo depende cada vez mais da Rota do Mar do Norte para os carregamentos de petróleo e de gás natural liquefeito, uma vez que os mercados asiáticos se tornaram mais importantes para Moscovo, pois a procura europeia de combustíveis fósseis russos diminuiu. A China está a beneficiar desta dinâmica ao garantir preços de energia favoráveis e um maior acesso ao Ártico. Está também a beneficiar quando a Rússia procura transferir parte da sua produção de minerais do Ártico para a China, para evitar sanções sobre o equipamento e obter acesso direto ao mercado de Pequim. Exemplo disso foi o anúncio da empresa russa Nornickel de que iria encerrar a sua fábrica de cobre no Ártico e transferir-se para a China.

Apesar de Moscovo recear a sua crescente dependência de Pequim e das diferentes culturas estratégicas dos dois países, parece que a necessidade económica e política está a facilitar uma colaboração mais profunda com a China, incluindo no Ártico. Mesmo que os interesses a longo prazo dos dois países divirjam, é difícil imaginar um cenário em que esta maior interdependência e emaranhamento tecnológico não resultem num alinhamento a longo prazo e numa maior influência por parte da China, economicamente mais forte e tecnologicamente mais avançada, que vê o Ártico como uma região importante para os seus interesses económicos e de segurança a longo prazo. E sendo importante estrategicamente para a China, deve também ser igualmente importante para europeus e americanos, que juntos devem fazer esforços para dividir a China da Rússia. O xadrez do Ártico não foge a essa regra.

Texto escrito antes de 1 de novembro de 2024

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).