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A pegada da Rússia em África

O continente africano é, infelizmente, palco de uma passada agressiva da Rússia para impor alinhamentos de regimes afetos aos interesses do Kremlin. Para tal, Putin tem explorado vários ressentimentos em relação a alguns países europeus, nomeadamente França, e promovido golpes de estado com apoio do Grupo Wagner, há já alguns anos presente na região do Sahel.

Apesar do risco que Yevgeny Prigozhin correu para tentar alterar a cadeia de comando militar russa, a verdade é que o seu papel é demasiado importante para o Kremlin, em particular em África. Não surpreende, por isso, que o líder do Grupo Wagner tenha sido presença ativa na segunda edição da cimeira Rússia-África, em São Petersburgo, que contou com 49 países africanos, embora com apenas 17 chefes de Estado representados. Tendo em conta que na primeira edição, em 2019, a totalidade dos países africanos esteve presente (54), representados por 45 chefes de Estado, não se pode dizer que exista hoje um apoio maciço e expressivo a Putin. Talvez o mais correto seja considerar que muitos países africanos querem explorar multialinhamentos para depender menos da história. Assim como se pode considerar que a agressividade de Putin procura amarrar, através do apoio a golpes de estado, novos eixos que lhe sejam favoráveis.  


Até porque do ponto de vista económico, não se pode dizer que a Rússia tenha uma relevância estrutural em África, contribuindo com menos de 1% do investimento direto estrangeiro no continente. Mesmo nas relações comerciais, o contributo também é modesto (14 mil milhões de dólares), comparado com o valor do comércio africano com os Estados Unidos (65 mil milhões de dólares), a UE (285 mil milhões de dólares) e a China (254 mil milhões de dólares). A Rússia exporta principalmente cereais, armas e energia nuclear para a África, sendo que mais de 70% de todo o comércio russo com África está concentrado em apenas quatro países: Egito, Argélia, Marrocos e África do Sul.  


A Rússia é também o principal vendedor de armas para África, controlando metade do mercado. Enquanto as armas russas são vendidas a 14 países africanos, a Argélia, o Egito e Angola abrangem 94% do valor das vendas de armas na região. A Rússia também promove a construção de centrais nucleares no continente, em especial no Egito, embora a grande empresa russa do setor, a Rosatom, tenha assinado acordos de cooperação com mais dezassete governos africanos, incluindo Etiópia, Nigéria, Ruanda e Zâmbia. 


Em relação a um dos assuntos do momento, os cereais, África depende da Rússia para 30% dos seus suprimentos, sendo praticamente tudo trigo (95%). 80% dessas exportações de trigo vão para o norte de África (Argélia, Egito, Líbia, Marrocos e Tunísia). No global, África importa 65% das suas necessidades de trigo, uma percentagem que deve aumentar à medida que a população de África cresce, como apontam todos os estudos demográficos. Dado o choque do preço dos alimentos causado pela interrupção do seu fornecimento pela Rússia e pela sua recusa em renovar, em Julho passado, o acordo com a Ucrânia para a exportação de cereais no Mar Negro – o que levou vários líderes africanos a pedir a Putin que reconsiderasse tal decisão — talvez a questão-chave seja perceber que estratégia adotarão os países africanos para se tornarem menos dependentes de um único fornecedor a médio-prazo, mesmo que os sinais sejam contraditórios sobre o curto-prazo, pois permitem ao Kremlin impor a sua agenda. 

O objetivo central da Rússia em África é reconquistar influência sobre um território estratégico entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, neste caso através do apoio ao golpe do general Abdel Fattah al-Burhan, em 2021, no Sudão, também ele a ferro e fogo. Para tal, focou-se na Líbia, onde se opôs aos esforços das Nações Unidas para estabelecer um governo estável e unificado em Trípoli. Em 2019, a Rússia enviou mercenários do Grupo Wagner para ajudar Khalifa Haftar a consolidar-se como novo homem forte, empregando recursos militares substanciais, incluindo caças e mísseis terra-ar. Se a Rússia finalmente tivesse sucesso, isso proporcionaria a Moscovo uma presença militar no norte de África, combinando alinhamentos na Argélia e no Egito, estabelecendo ainda uma presença naval no Mediterrâneo e no Mar Vermelho, permitindo-lhe, por exemplo, interromper o transporte marítimo global através dos estrangulamentos do Canal do Suez e do estreito de Bab al-Mandeb, entre o Iémen e o Djibuti. Mais de 30% do tráfego global de contentores depende desses corredores. 


Um segundo objetivo estratégico russo em África passa por anular a influência ocidental. Isso foi visto recentemente na República Centro-Africana (RCA) e no Mali, onde a Rússia passou a dominar a segurança presidencial da RCA e da junta militar maliana. Em ambos os casos, o Grupo Wagner assumiu o papel de guarda pretoriana do poder político, facilitando a influência política russa e o acesso a ricas matérias-primas críticas. Para tal, o grupo opera sob uma violência extrema, aumentando as vítimas civis, seguindo padrões já expostos contra populações locais na Líbia, Síria e Ucrânia. 

Certo é que a deterioração democrática tem implicações diretas na segurança e no desenvolvimento africanos, uma vez que três quartos dos conflitos no continente e 85% dos 36 milhões de pessoas deslocadas à força do continente estão concentrados em regimes autoritários. Relatórios recentes da ONU sobre a situação na África Ocidental e no Sahel apontam para cerca de 2,7 milhões de pessoas deslocadas e 1,6 milhões de crianças subnutridas desde que a violência interétnica e a sucessão de golpes de estado exacerbaram ainda mais a insegurança alimentar, numa região onde as mudanças climáticas e a guerra ameaçam a subsistência local, dada a onda de golpes militares desde 2020: dois no Burkina Faso e Mali, um no Chade e outro mais recentemente no Níger.

Na RCA, um russo é hoje o conselheiro de segurança nacional e mercenários do Grupo Wagner servem de guarda do Presidente Faustine-Archange Touadéra. À medida que se foram instalando no país, muito em torno das minas de ouro e diamantes, os mercenários adotaram uma postura cada vez mais agressiva contra a força de manutenção da paz das Nações Unidas, que têm mais de 15 mil homens destacados para ajudar a estabilizar o país. No Mali, as campanhas de desinformação russas iniciadas em 2019 desacreditaram a ONU, a França e o presidente democraticamente eleito, Ibrahim Boubacar Keita, falecido em 2022, tendo sido a Rússia o principal apoiante de um golpe militar que o depôs em agosto de 2020. 

No Burundi, assistimos ao prolongamento dos limites do mandato presidencial do presidente Pierre Nkurunziza, em 2015, e à violação dos Acordos de Arusha que puseram fim aos doze anos de guerra civil (1993-2005), o que conduziu a protestos brutalmente reprimidos, com mais de cem mortes e centenas de feridos. No seguimento disto, a Rússia bloqueou uma resolução da ONU condenando o regime de Nkurunziza, pedindo uma não interferência externa. Esta ação foi particularmente significativa, pois permitiu uma série de réplicas à violação dos mandatos na África Central, incluindo Joseph Kabila na República Democrática do Congo (RDC), Denis Nguesso no Congo e Paul Kagame no Ruanda, tendo a Rússia apoiado cada uma destas violações constitucionais.

Já o Níger tornou-se um país chave na região para a França após o golpe militar de 2021 no Mali, tendo Bamako cortado os laços de segurança com Paris, assim como o Burkina Faso. Paris decidiu então apoiar o Níger nos seus esforços para combater grupos jihadistas cada vez mais presentes no Sahel e no Norte de África, incluindo grupos afiliados da al Qaeda, do Estado Islâmico Africano e o Boko Haram. O recente golpe militar no Níger pode impedir França de renovar a cooperação de segurança em África, apesar de Paris, Washington e Bruxelas considerarem o presidente Mohammed Bazoum um aliado estratégico, ao que parece acompanhados pelo comunicado da cimeira extraordinária da CEDEAO, em finais de julho, quando exigiu o retorno à normalidade pré-golpe militar.

De certa maneira, a modesta pegada económica da Rússia em África pode não condicionar o Kremlin, que tem alternativas ao seu dispor para espalhar a sua influência na região: armamento, apoio a golpes militares, disrupções no abastecimento alimentar, capacitação de energia nuclear. Com todo este arsenal, será a Rússia encarada pelas populações africanas como um fator de desenvolvimento ou, ao invés, de delapidação da estabilidade e da paz numa parte significativa do continente? Valia a pena aprofundar os estudos de opinião sobre isto. Bem como a durabilidade dos alinhamentos políticos de alto-nível, tendo em conta os sinais que resultaram da última cimeira Rússia-África. É que nem as expetativas dos países africanos sobre a renovação do acordo de cereais do Mar Negro foram atendidas por Putin, nem as missões de boa-vontade para mediar a paz com a Ucrânia tiveram qualquer eco positivo no Kremlin. Mais uma vez, quando o tapete foge debaixo dos pés, a Rússia endurece o comportamento no exterior, provocando o caos e violando a lei.

De um ponto de vista mais lato, as motivações da Rússia para voltar em força a envolver-se em África passam por promover os seus interesses geoestratégicos entre o Mediterrâneo, fronteira sul da NATO, e o Mar Vermelho, eixo vital do comércio global, deslocando dessa forma a influência ocidental e normalizando a visão russa do mundo, utilizando África como um meio para os fins estratégicos maiores. Veremos se esta pegada terá, a prazo, os efeitos pretendidos.

Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.

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Bernardo Pires de Lima

Bernardo Pires de Lima

Investigador - IPRI Universidade Nova

Bernardo Pires de Lima  (Lisboa, 1979) é Investigador Associado do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa. Foi consultor político do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, analista de política internacional da Visão, do Diário de Notícias, da RTP e da Antena 1, e presidente do Conselho de Curadores da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Foi Investigador do Center for Transatlantic Relations da Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, e do Instituto da Defesa Nacional, em Lisboa. É autor de vários livros sobre política internacional contemporânea, sendo o mais recente O Ano Zero da Nova Europa (Tinta-da-china, 2024).