

Extra Cover
Publicado em Extra Cover
2035 num mundo ao contrário
O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (IPCC) é a fonte de informação global de referência sobre o ritmo das alterações climáticas e a base científica explicativa dos seus impactos nas sociedades contemporâneas. O seu relatório de avaliação científica de 2023 concluiu que cada uma das últimas quatro décadas foi sucessivamente mais quente do que qualquer década que a precedeu desde 1850. Concluiu também, de forma inequívoca, que as temperaturas médias globais à superfície aumentaram 1°C (relativamente ao período 1850-1900) em consequência da atividade humana.
O relatório também concluiu - com base numa série de cenários de emissões futuras, desde grandes aumentos líquidos a reduções acentuadas de emissões de gases com efeito de estufa - que as temperaturas da superfície global iriam aumentar ao longo do século XXI, com mais de 50% de hipóteses de 1,5°C ser atingido ou ultrapassado entre 2021 e 2040. Proponho, por isso, olharmos para uma série de dinâmicas a partir do ano de 2035. E prepararmo-nos para os seus impactos.
O clima aqueceu mais de 1,5°C, o objetivo mais baixo estabelecido pelos países no Acordo de Paris de 2015. Os riscos climáticos estão a minar significativamente a segurança humana em múltiplas dimensões: económica, política, social e ambiental. O leque de riscos atualmente presentes não é surpreendente. Durante décadas, os cientistas alertaram para ondas de calor mais frequentes, mais longas e mais quentes; para a aceleração da subida do nível do mar; para o aumento das chuvas torrenciais; para a intensificação das tempestades; para a alteração da distribuição de pragas e agentes patogénicos; para o aquecimento e a acidificação dos oceanos; para incêndios florestais mais quentes e mais longos e secas mais prolongadas.
Entretanto, os decisores políticos subestimaram a escala destes perigos, a rapidez com que foram surgindo e as perturbações sociais causadas em cascata. Tudo isto tornou-se bastante claro durante a crise global de segurança alimentar de 2032, desencadeada pelo impacto avassalador do El Niño, que afetou as bacias de arroz do Vietname e da China, entre outros países da região.
A crise acelerou a ação política para reduzir os gases com efeito de estufa, embora a transição global da energia, dos combustíveis fósseis para as energias renováveis, já estivesse a avançar, impulsionada pelos custos cada vez mais baixos das energias renováveis e pelas melhorias nas tecnologias de armazenamento. Não é de surpreender que os investidores de capital de risco, os gestores de ativos e os reguladores financeiros tenham sido dos primeiros a detetar os impactos das alterações climáticas nos mercados. Em meados da década de 2020, começaram a redirecionar os seus investimentos para as energias limpas e ativos mais resistentes, em detrimento dos combustíveis fósseis e das infraestruturas ameaçadas pelos impactos das alterações climáticas. Atualmente, muitos países estão precisamente a colher benefícios dessa transição energética, embora outros não tenham conseguido adaptar-se com a rapidez necessária, alguns por inação, outros por dependência excessiva dos combustíveis fósseis nas suas economias, algumas viradas praticamente para a guerra, como a Rússia. Com isso, não só perderam influência geopolítica, como a diminuição das receitas conduziu também a reduções nos investimentos internos, debilitando uma rede de assistência social já fraca e reavivando um descontentamento público crescente.
Também as alterações climáticas perturbaram significativamente o comércio mundial na última década. A transição energética reduziu o comércio ligado aos combustíveis fósseis e aumentou o comércio ligado a novos produtos energéticos, como o hidrogénio, as baterias e o aço verde. Os impactos climáticos perturbaram as cadeias de abastecimento, os mercados, as infraestruturas e, claro está, o poder de compra dos consumidores. A maior parte do comércio mundial continua a ser transportada por via marítima e tratada em infraestruturas portuárias, mas a combinação da subida do nível do mar e de tempestades cada vez mais intensas levou ao seu encerramento, muitas vezes durante meses.
Os países menos desenvolvidos foram os mais afetados pelos riscos climáticos. A falta de capacidade e a ineficácia das respostas governamentais às catástrofes amplificaram o descontentamento público face à crescente desigualdade, à corrupção, à falta de qualidade na oferta de serviços públicos e à fragilidade das instituições políticas. Tanto os governos como os seus detratores estão a utilizar a desinformação digital para prosseguirem as suas agendas, o que resulta frequentemente numa maior polarização, alimentada por narrativas tão emocionais como assentes em falsidades.
Não é surpreendente que os movimentos separatistas, o terrorismo e o crime organizado tenham aumentado nas nações menos desenvolvidas, à medida que os atores não estatais aproveitam a amplitude dos espaços abandonados pelos governos. Foi surpreendente, no entanto, a rapidez com que esses atores desenvolverem uma rede sólida de âmbito regional e global, distinta das fases anteriores, mais competitiva entre eles. A eficácia dos ataques terroristas de 2033 no sudeste asiático revelou a forma como esses grupos estão agora mais integrados, operando a um nível transnacional mais articulado e menos sujeitos a níveis antigos de competição interna, beneficiando financeira e organizacionalmente dos impactos políticos, económicos e psicológicos das suas ações.
No meio disto, não deixou de ser importante que as potências externas à região tenham continuado a prestar auxílio e assistência humanitária nos cenários de catástrofes naturais mais graves. Menos encorajador é o facto de a instabilidade nesses locais ter também criado oportunidades para a competição e intervenção das grandes potências. O incidente do início deste ano no Mar do Sul da China, o quarto em menos de uma década, demonstrou como a concorrência estratégica, o oportunismo, a desinformação digital e os erros de cálculo podem contribuir para a eclosão de conflitos e minar os esforços para diminuir as tensões. Nada disto é um bom presságio para a próxima década.
Os últimos anos voltaram a confirmar que a região do Indo-Pacífico, onde reside mais de metade da população mundial, quantas vezes numa densidade urbana claustrofóbica, está altamente exposta ao clima e a outros riscos. Na Indonésia, por exemplo, o nível do mar está a subir a um ritmo acelerado, como não se via há décadas. Consequentemente, o que em 2020 era uma inundação extrema observada com intervalos temporais alargados, é agora um acontecimento anual em muitas partes do país, deslocando regularmente grandes massas dos seus 310 milhões de habitantes. Migrações essas forçadas no território, embora muitos se juntem às dezenas de milhões de pessoas igualmente deslocadas em toda a região do sudeste asiático e que procuram refúgio noutros países. No ano passado, um país insular do Pacífico deslocou toda a sua população para a Austrália por razões exclusivamente climatéricas extremas.
Grande parte da Ásia do sul e do sudeste asiático está muito exposta a fenómenos extremos como o El Niño, potenciados pela intensidade dos anos húmidos, aumentando o risco de ciclones, e pela durabilidade dos anos secos. A região encontra-se numa posição altamente precária: novos ciclones intensificaram-se, causando inundações recorde em locais que ainda estão a recuperar do calor extremo, da seca e dos choques na segurança alimentar do ano passado e pela devastadora crise de 2032. A assistência humanitária proveniente do exterior é menos eficaz, prejudicada por novos fenómenos de bloqueio atmosférico, o que está a provocar um calor extremo e incêndios devastadores no oeste dos EUA, no sul do Canadá, em grande parte da Europa e na Sibéria. O mesmo fenómeno de bloqueio, do tipo que os cientistas há muito confirmaram estar ligado às alterações climáticas, está a afetar simultaneamente a monção subtropical do sul da Ásia, provocando inundações extremas em partes da sub-região que, de outro modo, poderiam ter escapado às inundações provocadas pelo El Niño.
Nas últimas duas décadas, as instituições e organizações regionais, como a ASEAN, o Fórum das Ilhas do Pacífico e os bancos multilaterais de desenvolvimento, intensificaram os seus esforços para responderem aos vários desafios económicos, políticos, sociais, de segurança e humanitários decorrentes do aquecimento global. No Pacífico, por exemplo, têm sido fundamentais para realojar as comunidades insulares deslocadas pela subida do mar e por ciclones mais fortes. No entanto, os seus esforços estão agora a ser ultrapassados pela escala dos riscos climáticos e pelos seus impactos em grande escala, e as dificuldades aumentam quando é preciso promover abordagens regionais às crises, com alguns Estados a optarem por erguer barreiras e a virarem-se para dentro.
É, contudo, encorajador que a maioria dos países, juntamente com instituições regionais, multilaterais e o sector privado, tenha concordado, no mês passado, em convocar uma cimeira global em 2036, para redinamizar os esforços multilaterais de maneira a enfrentar estes desafios multifacetados. A mais recente avaliação científica do IPCC sugere que a rápida transição para as energias renováveis e as recentes ações políticas mais ambiciosas são suscetíveis de manter o aquecimento abaixo dos 2,5°C, diminuindo assim o risco de se ultrapassarem outros limiares climáticos perigosos.
Este é um cenário de prospetiva, baseado em tendências agravadas, em indícios analíticos assentes em dados aceites pela comunidade científica, suficientemente graves para nos alarmar e chamar de vez a comunidade internacional a agir politicamente de forma corajosa e articulada. Há muitos outros efeitos que poderiam se levantados, mas alguns dos referidos parecem suficientes para a tomada de decisões, para a aceleração de calendários, para a afirmação de políticas públicas que assegurem as transições adequadas nas economias industriais, de forma a mitigar impactos já existentes e não agravando os que se seguirão.
Planeta, ciência, política, cidadãos. É este o eixo que importa coser de vez.
Texto escrito antes de 1 de novembro de 2024
Disclaimer: Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.
Os conteúdos e opiniões expressos neste texto são da exclusiva responsabilidade do seu autor, nunca vinculando ou responsabilizando instituições às quais esteja associado.