Artigo de opinião

Publicado em Extra Cover

Autonomia: uma via sinuosa para os automóveis

Graças aos avanços tecnológicos das últimas décadas, os veículos autónomos (VA), que faziam parte do universo da ficção literária e cinematográfica, já começam a ser uma realidade em muitos países por todo o mundo. Neste artigo exclusivo, Luís Cardoso apresenta as principais vantagens e desafios da adoção desta tecnologia, nomeadamente o seu impacto na indústria seguradora.

Desde que substituiu com vantagem as carruagens puxadas por cavalos, o automóvel sempre foi desenvolvido com o intuito de tornar as pessoas mais independentes e fazê-las deslocar-se com mais conforto.

Este progresso não se tem feito sem barreiras – a maior parte delas derivadas do preconceito. A meio do século XIX um dos Locomotive Act de Inglaterra atrasou grandemente os primeiros esforços de desenvolvimento… ao exigir que este fosse precedido por um homem… a pé, abanando uma bandeira vermelha. E mesmo dezenas de anos mais tarde prevalecia a ideia de que um automóvel não podia substituir com vantagem uma carruagem puxada a cavalos.

Entretanto, muito asfalto correu debaixo dos pneus. A evolução da tecnologia permitiu a introdução de sistemas automatizados, como sensores e câmaras de estacionamento, alerta de saída faixa de rodagem, aviso da distância de travagem e sistemas de travagem de emergência, (sistemas ADAS). Mas neste domínio procura-se ainda apoiar o condutor; no veículo autónomo (VA) trata-se de o substituir.

Atualmente, enquanto grandes empresas de tecnologia criam os seus próprios veículos autónomos e fazem lobby para eles circularem nas vias públicas, o grande público fica-se entre a curiosidade, o receio e… a negação. Hoje, a máquina quer substituir o criador e tirá-lo da sua posição atrás do volante. Será capaz?.... Voltem daqui a 20 anos para notícias frescas.

A opinião pública, essa hidra de mil cabeças das redes sociais, terá certamente um papel determinante na adoção da tecnologia, quer pela pressão sobre os legisladores, quer pelo simples e essencial poder de fazer falhar projetos, ao escolher não os financiar.

Mais seguros, mais eficientes e… mais feios?


Os benefícios dos VA são claros, ainda que seja difícil ver vantagens estéticas, mesmos nos modelos mais avançados…

  1. Segurança e redução de acidentes

Tipicamente, um dos grandes benefícios da introdução dos VA. Sendo a sinistralidade rodoviária uma das maiores causas de morte no mundo (1,35M de mortes /ano) e um problema generalizado de saúde pública, e sendo os acidentes causados quase exclusivamente pelos condutores, a remoção do fator humano na condução parece ser uma panaceia sem contestação. Muito estudos assumem um aumento da segurança rodoviária de mais de 90%. Há muitas situações, além da negligência, em que um VA é melhor que um humano a detetar perigo, pela simples razão de que tem “sentidos” mais apurados. Pense-se, por exemplo, como o veículo pode detetar obstáculos em situações de visibilidade reduzida ou nula, com recurso ao LIDAR e outros sensores. Ou na rapidez de resposta, uma vez que os VA praticamente eliminam o tempo de reação. Contudo, será impossível chegar a uma eliminação completa das colisões:

a)  Numa fase intermédia, que se prevê longa, em que veículos com e sem condutor vão conviver, a grande dificuldade será as máquinas lidarem com as reações dos condutores. Mesmo numa fase mais avançada, haverá sempre elementos estranhos e imponderáveis que podem causar colisões – por exemplo, tempestades, animais a atravessarem as estradas a correr ou peões a saírem atrás de veículos altos;

b)  Não é de excluir a própria falha – mecânica, elétrica ou informática – dos veículos. Estima-se que a programação dos VA terá algo como 300 milhões de linhas de código. Mesmo assumindo uma taxa de erros críticos de 1%, é um número considerável de erros que poderão afetar a segurança do veículo. No entanto, embora a complexidade cresça muito com os VA, é algo que acontece já hoje em dia. Muitos veículos têm já mais de 100 unidades de controlo eletrónico ligadas em rede, algumas ligadas a sistemas de segurança;

       2. Acessibilidade – Possibilidade de deslocação com autonomia, para pessoas portadoras de deficiência física, de mobilidade ou de visão ou sem licença de condução;

       3. Conveniência e conforto - Libertação do tempo de condução para outras atividades (lazer ou trabalho);

       4 - Menos custos ambientais – A utilização mais eficiente proporcionada pela partilha de veículos, maior controlo da velocidade e uma racionalização do tráfego urbano, leva a menos custos de produção de energia e de veículos;

       5 - Melhoria dos espaços urbanos – Estudos apontam para uma redução do parqueamento em zonas urbanas até 68%, libertando espaço para as pessoas.

Desafios para a generalização dos VA
 

Atualmente, a maior parte dos veículos disponíveis para uso particular não ultrapassam o nível 2 (caso do Tesla) ou o nível 3 (alguns Mercedes, por exemplo), segundo a classificação de autonomia da NHTSA (National Highway and Transportation Safety Administration).  O que significa, no caso do nível 2, que o condutor tem de estar permanentemente atento e disponível para assumir a condução. Grande parte das colisões reportadas, e que sempre encontram um impacto mediático generoso, resultam de falhas de condutor – que não assumiu os controlos quando devia.

Nas últimas duas décadas, os VA passaram por uma evolução acelerada, alavancados pelo investimento das grandes tecnológicas como a Google, a Uber e a Apple. Novas companhias como a Zoox passaram rapidamente de protótipos para veículos a circular em serviço público de passageiros (táxis e autocarros). São elas que atualmente estão a pilotar veículos de nível 4 e nível 5, sobretudo em cidades da costa Oeste dos EUA, mas também na Europa (caso da VW Id.Buzz em Munique).

O futuro depende do sucesso destas experiências e da forma como o público as vai aceitar, mas há ainda desafios importantes – mas não impossíveis – para que os VA se tornem a regra do transporte e não a exceção:

      1. Infra-estrutura
É necessário haver uma infraestrutura de comunicações 5G, baseada em standards de comunicação, bandas específicas alocadas, etc, que permitam a interação entre veículos, vias, sinalização e entidades publicas.

      2. Desafios da regulação
A legislação tem de progredir não só no espaço comunitário como na articulação com outros países produtores – tema sempre delicado e polémico.

a) Os VA têm de cumprir os padrões de segurança da EU, como as regras específicas da General Safety Regulation (EU) 2019/2144 – e as relativas à cyber segurança;
b) É necessária legislação específica para o desenvolvimento e teste de VAs, que alguns países já estão a introduzir;
c) Além disso, estes veículos deverão seguir as regras de circulação, em vigor em cada país (exemplo: como circular em rotundas). Há aqui uma oportunidade para a uniformização;
d) Clara definição da responsabilidade pelo produto. Tratando-se de um produto complexo, com muitos fabricantes envolvidos, é preciso saber quem responde e em que circunstâncias. Sendo que a primeira responsabilidade será sempre da marca que comercializa.;
e) Proteção de dados e privacidade: os VA têm que seguir as regras do RGPD– mesmo que tenham sido produzidos por empresas de geografias mais “permissivas”.


    3. Desafios para os Seguros
Autonomia pressupõe responsabilidade, todos sabemos.  A responsabilidade civil dos VA é um assunto complexo que desafia o sistema instituído. É uma matéria complexa que tem de ser regulada de forma mais rigorosa pela EU.

Várias hipóteses têm sido estudadas, sem que haja ainda uma resposta clara. O que é certo é que a RC tradicional, que assenta em primeira linha no condutor, vai perdendo terreno, ou pelo menos terá de ser progressivamente mitigada com outras formas de responsabilidade. Seja uma majoração da responsabilidade pelo risco do veículo, seja uma reforçada responsabilidade pelo produto, ambas com limitações e complexidades próprias, algum caminho terá de ser claramente apontado para que a segurança jurídica, apoiada num sistema de seguro obrigatório, possa continuar a garantir a necessária pacificação social.

Será preciso considerar novos riscos, como a cibersegurança ou a responsabilidade do produtor, que têm de passar a fazer parte do seguro automóvel.  A própria operativa terá de mudar, para garantir acesso aos dados dos veículos, para se poder decidir sobre responsabilidades. Sem isto, teremos um novelo de dificuldades práticas na resolução de acidentes que, na prática, nos pode fazer recuar a uma Europa antes da existência de um seguro obrigatório.

“The Long and Winding Road”


Muito do caminho se terá que fazer informando e educando os utilizadores de forma efetiva e não sensacionalista sobre os avanços e os riscos dos novos veículos.  Não será fácil convencer os “condutores de carruagens” atuais que estão seguros nas mãos dos seus veículos. Terá de haver educação, e até possivelmente uma licença própria para poder usar os VA. Os utilizadores terão de estar prontos para assumir a máquina em determinadas circunstâncias – e poderão fazê-lo? E a que custo? Pensemos no caso de crianças sem acompanhamento de um adulto, pessoas com deficiências motoras ou outras; ou ocupantes que tenham consumido substâncias que os inibem de conduzir.

Também toda a questão da cibersegurança pode ser uma das pedras de toque da adesão do público e aqui haverá que desmistificar o perigo de ataque - sem o menorizar. Mas uma outra questão gera muita discussão e que não será fácil pacificar: a questão dos parâmetros éticos da decisão. A decisão tomada pela inteligência do veículo está baseada em casos pré-definidos, que esta levará em conta nas circunstâncias concretas que se lhe apresentem. Vai proteger a criança ocupante ou a que atravessa a passadeira? O idoso que segue a bordo ou o cão que se atravessa? Prefere atingir o imã pedestre ou causar danos à freira católica que segue no veículo? Vai colidir com a vaca na Índia ou atropelar os peões no passeio?

Prevê-se um caminho de sucesso, mas com obstáculos em que será necessário manobrar com sensibilidade e, sobretudo, bom senso, para evitar que alguém caminhe à frente do veículo autónomo, a pé e com uma bandeira vermelha na mão…

VER MAIS

AUTORES

Luís Cardoso

Luís Cardoso

Consultor -

Luis Cardoso é um consultor sénior de seguradoras em áreas como transformação digital, excelência operacional e gestão de serviço ao cliente e sinistros. Com cargos executivos em várias companhias, liderou a gestão de sinistros na Europa de uma seguradora americana,  projetos internacionais na Polónia e na Holanda, peer reviews na América Latina, Europa e Ásia e foi diretor executivo de várias áreas como Serviço ao Cliente, Inovação, Excelência Operacional, Estratégia, PMO e Business Migration em Portugal e na Europa.

Luis Cardoso é formado em Direito pela Universidade de Coimbra, e tem formação específica em transformação Digital pela Catolica Business School e em Digital Services pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre outros.